Somos mais do que a roupa que vestimos
Quer queiramos quer não a imagem chega ao cérebro primeiro. E a roupa que escolhemos usar, a forma como a combinamos, conta imediatamente qualquer coisa sobre nós.
Querida mãe,
A verdade faz-nos mais fortes
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Querida mãe,
Dou aulas de música num jardim-de-infância e, de cada vez que entro na sala, os miúdos vêm a correr ter comigo entusiasmados. Muitas vezes, das primeiras coisas que me dizem é: “Ana, eu tenho esta T-shirt nova!”; ou “Eu tenho estes ténis que são muito giros”, ou ainda “Olha a Minnie na minha camisola!”. Depois começam todos a querer mostrar o que têm vestido ou o que trouxeram.
Fiquei a pensar... porquê? Vendo bem, nós adultos começamos as conversas com as crianças com comentários desse género “Ai que giro que estás hoje”, “Adoro o teu vestido”, etc., etc.. Pensando bem fazemos o mesmo entre adultos! Por um lado, percebo que é uma forma inteligente de dizermos uns aos outros “Estou a ver-te a ti”. E faz sentido que as crianças usem essa ferramenta para, no meio de muitos, pedirem “Olha para mim! Eu sou diferente dos outros”. É uma forma de estabelecer uma relação, principalmente se não conhecemos muito sobre o interior da pessoa.
Apesar de ter consciência disto tudo, não consigo deixar de me questionar (e a si!): Teremos um foco excessivo nas roupas/aspecto físico, será que é assim noutras culturas? Era assim quando a mãe era mais nova? E não sendo quais eram os “ganchos” para começar as interacções?
É fácil partirmos do princípio de que esta é a maneira mais natural, mas sabe-me a pouco. Porque sim, queremos ser vistos, mas na verdade por aquilo que somos para lá da roupa que vestimos.
Fico à espera da sua sabedoria!
Hum... Ana,
Pela sabedoria podes continuar a esperar, mas a tua carta fez-me lembrar uma conversa há muitos anos com o teu irmão, na altura adolescente. Eu fazia-lhe um daqueles discursos de mãe sobre o que importava nas raparigas era a beleza que não se via à primeira vista, e ele trocista respondeu-me que não tinha vocação para arquitecto de interiores. Ou qualquer coisa assim. Provocação à parte, pôs o dedo na ferida: quer queiramos quer não a imagem chega ao cérebro primeiro. E a roupa que escolhemos usar, a forma como a combinamos, conta imediatamente qualquer coisa sobre nós.
São os tais “ganchos” que, sinceramente, me parecem ancestrais, mesmo quando elogiar abertamente a aparência do outro, sobretudo de uma criança, não fazia parte dos cânones (com medo de que a vaidade lhe subisse à cabeça ou porque a modéstia do que se vestia era supostamente um sinal do valor da alma coberta por aqueles panos sem graça).
Durante muito tempo, e ainda em muitas escolas, a opção é pela farda — ou o bibe —, não só porque é mais prática, mas, supostamente, porque permitiria esbater as diferenças, nomeadamente sociais, dando como que uma igualdade de oportunidade a todos. Mas os miúdos (e eu e tu sabemo-lo por experiência própria) encontram sempre forma de furar o esquema, e individualizar-se de alguma maneira — fosse pela altura das bainhas das saias, que as freiras mandavam descer, pelo uso da gravata como cinto, o laço no cabelo, ou outra diferença qualquer. E ainda bem.
Provavelmente agora com a roupa ao preço da chuva e um leque de opções ilimitado, somado ao culto da imagem nas redes sociais, mesmo os mais pequenos já fazem dela bandeira desse desejo fundador da humanidade, o de “darmos nas vistas” o suficiente para que o outro tenha vontade de nos conhecer melhor. Afinal, as flores e os animais fazem o mesmo.
Na escola, este desafio de ver cada um como único, é um desafio muito exigente, mas a que os bons professores conseguem responder. São aqueles professores que nunca esquecemos — como provavelmente também o que tínhamos vestido no primeiro dia em que os conhecemos.
No Birras de Mãe, uma avó/mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, vão diariamente escrever-se, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. Na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. Facebook e Instagram.