Uma viagem entre França e Odemira
Se me é difícil perspectivar a vida que o meu pai levou, nos anos 60, muito mais difícil me é ouvir falar sobre as situações desumanas que encontramos em Odemira.
Quando olho para o meu pai — um calmo e pacato cidadão que conta já com mais de 80 primaveras — tenho alguma dificuldade em percepcioná-lo como o jovem que, com pouco mais de 20 anos, cansado de um país cinzento que não lhe dava oportunidades, decidiu emigrar para França.
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Quando olho para o meu pai — um calmo e pacato cidadão que conta já com mais de 80 primaveras — tenho alguma dificuldade em percepcioná-lo como o jovem que, com pouco mais de 20 anos, cansado de um país cinzento que não lhe dava oportunidades, decidiu emigrar para França.
Desengane-se quem pensa que o jovem beirão pegou na sacola, comprou um bilhete de comboio e apresentou-se à “bela França” já com um emprego à sua espera. O meu pai, tal como a maior parte dos emigrantes que conheço, foi “a salto” (era essa a expressão utilizada na época para quem atravessava a fronteira de forma ilegal) com dinheiro contado e sem nenhum emprego em vista. É óbvio que ir “a salto” não era fácil e, muito menos, barato. Havia que juntar um bom dinheiro antes para pagar ao “passador” — o homem que guiaria um grupo de homens por montes e vales até à fronteira — e para sobreviver no novo país até se receber o primeiro salário.
Contar-vos-ei outro dia a extraordinária viagem de meu pai até França, pois hoje não é tanto essa história que me traz aqui mas sim falar-vos do El Dorado que o meu pai encontrou quando chegou a França, aquela que era a Terra Prometida para eles. Depressa o jovem beirão descobriu que a França era mais madrasta do que se poderia pensar e que tinha muito pouco de El Dorado.
Para começar, trabalhava-se e em péssimas condições. Trabalhava-se nas obras, nas estradas, nos caminhos-de-ferro. Trabalhava-se muito, trabalhos árduos e difíceis, trabalhava-se horas infindas e, no final do dia, era-se mal pago.
As condições de vida eram, na sua maioria, péssimas. Quando o meu pai chegou a França, foi acompanhado e apoiado por colegas da aldeia que, também eles, tinham “dado o salto” e já tinham trabalho e lugar onde pernoitar. Efectivamente, se havia coisa que não faltava à França dos anos 60 era trabalho. Muito e para quem quisesse. O que faltava, e bastante, era casas condignas, locais onde viver. Conta o meu pai que os primeiros tempos que lá viveu foram vividos num anexo onde muitos se juntavam e a dormida era realizada numa carrinha, onde dormiam uns quantos. Eram tantos lá que a meio da noite as gotas de condensação lhes caíam em cima, deixando-os num mal-estar constante. A água era-lhes providenciada pela bondade de um padre que deixava que a fossem buscar à sua igreja.
Penso que poderão imaginar as condições de vida em que o meu pai viveu nos primeiros tempos de França. Não podemos negar que foi explorado pelos primeiros patrões que lhe ofereceram emprego e as primeiras habitações onde se acolheu eram tudo menos dignas de serem chamadas de casa. Estas situações que relato aconteceram ao meu pai e a grande parte dos que seguiram para França à procura de melhor vida. Estávamos nos anos 60 em França. São situações que sempre tive dificuldades em imaginar. Situações que cataloguei como inadmissíveis num país que tinha como civilizado.
Aqui chegados perguntar-se-ão o porquê desta viagem no tempo, certo? E responder-vos-ei que a viagem no tempo se deve às semelhanças que não consigo deixar de encontrar no nosso país, com o caso dos imigrantes de Odemira. Também eles vieram aos milhares, também eles vieram por rotas de imigração, pagando mundos e fundos para aqui chegar (fala-se em valores a rondar os 10 mil euros) e, muitas vezes, endividando-se para chegar ao país onde, supostamente, poderiam encontrar um emprego bem pago que lhes permitisse poupar algum dinheiro que enviariam às suas famílias.
Também eles vivem em condições habitacionais semelhantes às que o meu pai encontrou nos anos 60 em França. Vivem em locais sobrelotados, que pagam a preços exorbitantes, muitas vezes sem água e electricidade. Trabalham horas infindas recebendo por esse trabalho, grande parte das vezes, menos que o salário mínimo. São explorados por patrões inescrupulosos. Isto, quando falamos daqueles que recebem. Não estou sequer a falar daqueles que são escravizados, vítimas de tráfico, de exploração sexual. E tudo isto se passa num Portugal de 2021!
Tenho dificuldade, muita, em perspectivar o tipo de vida que o meu pai teve quando chegou a França. Não serve de desculpa mas sempre pensei que um longo percurso tinha sido realizado desde esse tempo nesta Europa que se quer civilizada e cumpridora dos direitos humanos.
Agora, se me é difícil perspectivar a vida que o meu pai levou, nos anos 60, muito mais difícil me é ouvir falar sobre as situações desumanas que encontramos em Odemira. É verdade que há muito que ouvíamos em surdina o que se passava pelo Alentejo. É verdade que já tínhamos ouvido algumas denúncias. Mas nunca, como agora, se tinha falado tanto no assunto. Nunca, como agora, se tinham aberto as portas para a comunicação social para nos mostrarem a miséria em que deixamos viver aqueles que procuraram o nosso país para melhorar de vida. E isso dói. Incomoda.
É duro constatar que a exploração do homem pelo homem perdura ao longo dos anos numa Europa que se diz civilizada. Sem qualquer pejo nem vergonha. Tudo em nome de um lucro que se pretende e que se quer fácil. E o que dizem os nossos governantes sobre esta situação? De acordo com as palavras de Eduardo Cabrita, o nosso ministro da Administração Interna, o modelo económico da região (uma forma eufemística de abordar a questão) não é um caso prioritário para o Governo, uma vez que tem outras lutas para travar… Tristes e inadmissíveis palavras, direi eu.
O mundo não pára de girar. Sessenta anos depois da onda de emigração para França, onde tantos e tantos foram explorados, somos nós o país que recebe, somos nós o país que explora. E somos nós quem mostra que no meio de tanta evolução nós, enquanto seres humanos, não evoluímos nada.