Da sabedoria dos polvos e dos humanos
Apenas quando capacitados com o tempo e os recursos necessários (tal como seria o caso com um rendimento básico incondicional), podemos permitir-nos a fazer aquilo de que mais gostamos; e, não poucas vezes, fazer aquilo de que mais gostamos é mais útil à sociedade que aquilo que nos obrigam a fazer.
Recentemente premiado com o Óscar de melhor documentário, o filme A sabedoria do polvo deixou-me a pensar na sabedoria… dos humanos. Este documentário segue o realizador Craig Foster nos seus mergulhos diários à procura de um polvo que rapidamente se habitua à sua presença e em relação ao qual a afeição e confiança vão aumentando constantemente. As filmagens deste ano de relação entre polvo e ser humano deixaram-nos vários exemplos da inteligência do primeiro e da sensibilidade e perseverança do segundo. Visto por milhões de pessoas, este documentário terá certamente servido para aumentar o nosso conhecimento em relação ao curioso cefalópode, tendo-nos oferecido imagens únicas. Mas é sobre o que levou à própria existência do documentário que me interessa falar: a possibilidade de fazer nada.
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Recentemente premiado com o Óscar de melhor documentário, o filme A sabedoria do polvo deixou-me a pensar na sabedoria… dos humanos. Este documentário segue o realizador Craig Foster nos seus mergulhos diários à procura de um polvo que rapidamente se habitua à sua presença e em relação ao qual a afeição e confiança vão aumentando constantemente. As filmagens deste ano de relação entre polvo e ser humano deixaram-nos vários exemplos da inteligência do primeiro e da sensibilidade e perseverança do segundo. Visto por milhões de pessoas, este documentário terá certamente servido para aumentar o nosso conhecimento em relação ao curioso cefalópode, tendo-nos oferecido imagens únicas. Mas é sobre o que levou à própria existência do documentário que me interessa falar: a possibilidade de fazer nada.
Foster, o mergulhador, decidiu, por uma série de razões pessoais e profissionais retirar-se durante uns tempos na sua casa junto à costa sul-africana. Sem a obrigação de desempenhar qualquer atividade – com a possibilidade de fazer “nada”, portanto – Foster começa a mergulhar à procura de um polvo e de si próprio. Teríamos tido este documentário caso Foster não se pudesse ter permitido a fazer nada? E teríamos tido o mesmo documentário caso tivesse sido uma encomenda e não o reflexo de uma experiência pessoal e voluntária? A resposta a ambas as perguntas é, muito provavelmente, não. Daí a importância de dar a possibilidade a cada um de nós de poder fazer nada, sendo um rendimento básico incondicional uma das formas de o conseguir.
Já tive a oportunidade de defender no PÚBLICO a ideia de um rendimento básico incondicional e porque acho que o mesmo é uma necessária ferramenta de emancipação, de autonomia e de preservação ecológica. Uma das críticas que mais recorrentemente é feita a este tipo de rendimento é a de que não devemos pagar a ninguém sem qualquer tipo de contrapartida, desde logo para evitar que o beneficiário faça nada. Esta crítica exige uma série de respostas – o que é, afinal, fazer nada? – que não me posso permitir a dar aqui, pelo que me focarei apenas em duas delas.
Em primeiro lugar, numa sociedade assente no ultra-consumismo e ultra-produtivismo, onde o acelerar dos ritmos – de vida, de trabalho, das relações – é uma constante, fazer nada é um ato subversivo e necessário. O ócio, a contemplação, a flânerie ou a própria preguiça são um direito ao qual apenas uma minoria tem direito. Ter o tempo e os recursos para “parar de sobreviver”, nas certeiras palavras do filósofo André Barata, é uma tarefa cada vez mais árdua e, à luz do ethos produtivista que nos rege, vista com desdém. Este travão ao tapete-rolante que vai aumentando de ritmo seria, pois, uma maneira de aumentar o bem-estar humano e contribuir para nos afastarmos da situação de insustentabilidade ecológica na qual nos encontramos.
Em segundo lugar, a própria possibilidade de fazer nada pode despertar o melhor de cada ser humano. Exemplos como o de Craig Foster são uma prova disso. Ou ainda o exemplo apresentado por David Graeber na sua análise aos “empregos da treta” em que Joaquín Garcia, um trabalhador espanhol que durante seis anos não se apresentou no seu local de trabalho – sem que, aparentemente, ninguém se apercebesse, o que prova a inutilidade do mesmo – tendo-se tornado num especialista do trabalho de Espinosa. Apenas quando capacitados com o tempo e os recursos necessários (tal como seria o caso com um rendimento básico incondicional), podemos permitir-nos a fazer aquilo de que mais gostamos; e, não poucas vezes, fazer aquilo de que mais gostamos é mais útil à sociedade que aquilo que nos obrigam a fazer.
Fazer nada é, portanto, um imperativo social e ambiental e, eventualmente, uma porta aberta para a criatividade e para o florescer do potencial de cada um de nós. Ousemos tudo, fazendo nada.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico