Da sedução ao assédio
Admito que as fronteiras entre a sedução e o assédio são estreitas, mas, ainda assim, elas existem. E clarificá-las permite dar o devido destaque aos casos de verdadeiro assédio sexual.
Finalmente parece ter chegado a Portugal a onda do #MeToo, onde várias mulheres se dispuseram a revelar que foram assediadas no passado. Que esses casos de assédio sexual se tornem públicos, desmascarando o quão entranhadas estão nas hierarquias do poder tais agressões sexuais, é importante para se protegerem as vítimas, seja em que caso forem. Todavia, parece-me pertinente que devem ser estabelecidas as fronteiras entre o que pode configurar um quadro de sedução (e já veremos porquê), em que o consentimento é recíproco, e um quadro de assédio sexual, integrante da agressão sexual. Na sedução, um “não” será sempre respeitado enquanto tal, contrariamente ao assédio.
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Finalmente parece ter chegado a Portugal a onda do #MeToo, onde várias mulheres se dispuseram a revelar que foram assediadas no passado. Que esses casos de assédio sexual se tornem públicos, desmascarando o quão entranhadas estão nas hierarquias do poder tais agressões sexuais, é importante para se protegerem as vítimas, seja em que caso forem. Todavia, parece-me pertinente que devem ser estabelecidas as fronteiras entre o que pode configurar um quadro de sedução (e já veremos porquê), em que o consentimento é recíproco, e um quadro de assédio sexual, integrante da agressão sexual. Na sedução, um “não” será sempre respeitado enquanto tal, contrariamente ao assédio.
Sofia Arruda foi a primeira a denunciar o assédio, no programa “Alta Definição” de Daniel Oliveira, na SIC. Depois seguiram-se mais mulheres, como Catarina Furtado, entre outras, na revista Sábado. Sem se negar a veracidade destes casos, importa ressaltar que nenhuma destas vítimas deu os nomes dos seus agressores. Seguiu-se uma crónica de Henrique Raposo, em que o cronista felicitava Sofia Arruda, mas onde dizia também ser preciso ir mais longe, nomeando os agressores. Só assim se poderia combater o flagelo do assédio sexual, na sua opinião. E, na sequência desse pedido, a jornalista Joana Emídio Marques divulgou o seu caso, de suposto assédio sexual, nomeando o conhecido editor Manuel Alberto Valente como alegado agressor, num post que publicou no Facebook, no seu mural, e que deu origem à divulgação da notícia em vários órgãos de comunicação social.
Como é habitual, nestes casos, criaram-se barricadas a defender, ora a alegada vítima, ora o alegado agressor. O problema das redes sociais é mesmo esse: o de gerar linchamentos públicos sem dar oportunidade aos acusados de se defenderem. E, precisamente por isso, a incitarem ao ódio gratuito, em muitos dos casos. Manuel Alberto Valente veio defender-se, dizendo que as acusações são falsas, mas que o assunto seria remetido para a justiça, lugar onde se devem, de facto, julgar os factos apresentados e decidir da veracidade e da culpa, ou não, do acusado.
Admito que as fronteiras entre a sedução e o assédio são estreitas, mas, ainda assim, elas existem. E clarificá-las permite dar o devido destaque aos casos de verdadeiro assédio sexual. O que Joana Emídio Marques narra no seu post, assumindo ser verdadeiro, configura mais o caso de uma tentativa de uma suposta sedução do que propriamente assédio sexual e o caso não transformaria Manuel Alberto Valente num predador sexual. Em todas as circunstâncias, mesmo quando incomodada, segundo as suas palavras, a jornalista teria a oportunidade de se levantar e abandonar o local do jantar, recusando os avanços do suposto “predador”, e não o fez. Por último, aceitaria, segundo o relato, boleia dele, mesmo sendo pessoa duvidosa e que ela sentia já ameaçadora da sua integridade física.
A leitura deste relato leva-me onde queria chegar. Todas as circunstâncias nele implícitas, se forem verdadeiras, caracterizam um quadro de sedução que não chega para o definir como assédio sexual. E o ponto está aqui. Não se trata de menosprezar as vítimas de assédio sexual, mas exactamente o contrário. Devem valorizar-se os casos de verdadeiro assédio sexual, em que as vítimas mantêm com o agressor uma relação de poder e em que estes usam o mesmo para obter favores de natureza sexual. Casos em que as vítimas se vêem muitas vezes em situações extremamente complexas (como a necessidade de manter o emprego ou algo semelhante), bem como relações com colegas de trabalho, em que se torna difícil reportar os casos a entidades superiores. Além disso, os escassos seis meses em que a vítima deve dar conhecimento do caso deveriam ser alargados, pois, num caso de assédio, a vítima pode estar tão traumatizada que não tenha condições psicológicas para o fazer. E, acrescento, a mão deve ser pesada para os agressores, com a justiça a exercer a sua função com dignidade.
A observação inquisitorial de Henrique Raposo para dar os nomes dos agressores à praça pública (com certeza que no campo da justiça será diferente, porque os casos devem-lhe ser reportados) tem consequências terríveis, tais como o linchamento público dos alegados agressores/as e perde-se completamente o respeito pela regra básica da justiça, a da presunção da inocência. Mesmo que o alegado agressor venha a ser ilibado, o “tribunal” das redes sociais e dos órgãos de comunicação já contribuíram para a estigmatização dos acusados, independentemente da sua culpabilidade ou não.