Os Gaibéus do séc. XXI
Infelizmente, o que neste momento está em discussão é a situação dos migrantes e olvida-se ou arruma-se, como sempre, a raiz do problema, que assenta na exploração indevida de um terreno cujos valores naturais deviam ser salvaguardados, fiscalizados e impedidos de utilizar. É tempo de ouvir os cientistas.
O romance de Alves Redol de 1939 reaparece agora quase 100 anos depois. A história repete-se: um colectivo de pessoas migrantes são exploradas de forma directa e abjecta com a necessidade de mão-de-obra rápida e barata. No romance de Alves Redol são os que se deslocam para as lezírias do Tejo, trabalhando de sol a sol para os proprietários, que asseguram a produção dos bens alimentares que alimentam um Portugal desigual e remediado. Agora são os estrangeiros ilegais que vêm de países onde as vidas são madrastas e onde podem – apesar de tudo – retirar um pouco para enviar para as suas famílias de países longínquos. Deslocam-se sobretudo para o Alentejo, para um trabalho árduo e também sazonal, tanto no litoral como no interior. Os proprietários agora são outros, são médias ou grandes empresas, multinacionais, que necessitam de mão-de-obra barata e em quantidade, para colocar os produtos no mercado nacional e internacional, para aumentar a voracidade do consumismo da sociedade actual.
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O romance de Alves Redol de 1939 reaparece agora quase 100 anos depois. A história repete-se: um colectivo de pessoas migrantes são exploradas de forma directa e abjecta com a necessidade de mão-de-obra rápida e barata. No romance de Alves Redol são os que se deslocam para as lezírias do Tejo, trabalhando de sol a sol para os proprietários, que asseguram a produção dos bens alimentares que alimentam um Portugal desigual e remediado. Agora são os estrangeiros ilegais que vêm de países onde as vidas são madrastas e onde podem – apesar de tudo – retirar um pouco para enviar para as suas famílias de países longínquos. Deslocam-se sobretudo para o Alentejo, para um trabalho árduo e também sazonal, tanto no litoral como no interior. Os proprietários agora são outros, são médias ou grandes empresas, multinacionais, que necessitam de mão-de-obra barata e em quantidade, para colocar os produtos no mercado nacional e internacional, para aumentar a voracidade do consumismo da sociedade actual.
Em ambos os casos, as situações roçam o que antigamente se denominava de escravatura, de trabalho fácil, onde os mais frágeis estavam sujeitos ao anonimato e às doenças. Antes era a malária, agora é a covid-19. Antes era abafado, agora, numa sociedade digital, tudo se sabe.
Os dramas repetem-se e o grave da situação é que a solução governamental acaba por ser idêntica: havia uma ignorância e inoperância no início do séc. XX e, como a comunicação era mais pobre ou escassa – a que chegava –, a sociedade vivia num profundo desconhecimento e indiferença, porque nem todos assistiam e o conduto chegava às mesas. Em pleno sec. XXI, o impacte imediato dos canais de comunicação levam a obrigar o Governo a agir, pressionado pela opinião pública e, em particular, pela imagem que poderão transmitir perante uma presidência europeia, em tempo de pandemia. Alguma população revolta-se, mas fica calada, acomoda-se com a mesma indiferença de nada poder fazer, até porque somos bombardeados pela importância de tais produtos para a balança comercial, para o aumento do PIB e das exportações. O que importa é reflectir a causa destas situações.
A faixa litoral alentejana é marginada por um planalto costeiro com falésias abruptas e muito recortadas que escondem pequenas praias de areia. É uma plataforma litoral de uma beleza paisagística apetecível e muito cobiçada do ponto de vista turístico, que se estende por uma faixa estreita entre S. Torpes e Burgau. Foi constituída como Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina há 47 anos, com o objectivo de preservar os valores naturais existentes e “disciplinar” a ocupação do espaço. Valores de uma elevada diversidade paisagística, incluindo habitats protegidos ao abrigo da Directiva Habitats que suportam uma elevada biodiversidade, tanto de flora como de fauna.
No que respeita aos aspectos económicos, grande parte da área sempre foi ocupada por terrenos agrícolas, maioritariamente por sistemas e culturas tradicionais, com excepção da área ocupada pelo Perímetro de Rega do Mira, onde a disponibilidade de água tem permitido a reconversão e intensificação dos sistemas produtivos. Os pequenos agricultores de subsistência passaram rapidamente a empresas que privilegiavam a agricultura intensiva, debaixo de plástico ou não, que tem avançado de forma absolutamente descontrolada, esgotando a reserva da Barragem de Santa Clara e tirando partido dos aquíferos que permitem a sustentabilidade de habitats húmidos frágeis, em vias de extinção.
Esta situação ocorre pelo interesse em desenvolver uma agricultura de regadio com retorno económico, fácil e bom para o PIB do país, especialmente porque estas instalações agrícolas não carecem de licenciamento, apenas de um parecer do Instituto de Conservação da Natureza e Florestas (ICNF) – que tutela as áreas protegidas. Numa altura em que o Pacto Ecológico devia ser respeitado e vertido para a legislação nacional, o que se assiste é à promoção, licenciamento e apoio de empresas que exploram uma das últimas costas selvagens, classificada como Rede Natura 2000, e onde a fiscalização da exploração agrícola não é minimamente assegurada.
Infelizmente, o que neste momento está em discussão é a situação dos migrantes e olvida-se ou arruma-se, como sempre, a raiz do problema, que assenta na exploração indevida de um terreno cujos valores naturais deviam ser salvaguardados, fiscalizados e impedidos de utilizar. É tempo de ouvir os cientistas. Parece que nada se aprendeu com a crise pandémica que ainda se vive. A produção agrícola não pode ignorar os efeitos sobre o ambiente, já que não é realizada num contexto fabril e isolado. Pelo contrário, instala-se dentro de ecossistemas que eram naturais, alguns fragilizados como no caso desta costa. Não são os ecólogos que oferecem resistência aos políticos, mas antes os políticos que não sabem ou não querem ouvir os conhecimentos científicos sobre as ameaças sociais que a degradação dos ecossistemas provoca.
A dimensão agrícola não é compatível com a conservação biológica e quanto mais crescer mais conflitos surgirão, até pela falta de água dos aquíferos sobre explorados e pelas alterações climáticas. Cabe ao Estado saber intervir e requerer as políticas públicas para lidar com as questões de sustentabilidade ambiental em agricultura. Estas políticas podem ser várias, desde que respeitem a pegada ecológica, a salvaguarda de áreas da Rede Natura e até incentivar comportamentos de compra de bens produzidos em condições que respeitem os serviços do ecossistema. E é tempo de as definir, porque a PAC (Política Agrícola Comum) e o PRR (Plano de Recuperação e Resiliência) estão em vias de aprovação.