A linha que fecha também abre
O Julião que eu vejo aqui é aquele que de modo mais livre e mais radical expunha e discutia os seus gostos e nos levava sem medo ao atelier ver as suas obras a nascer.
Morreu o Julião. E eu percebi que todos os pretextos que encontrei para ficar em Lisboa mais estes dias mascaravam a certeza de que se regressasse a Paris não poderia despedir-me dele. Nas últimas semanas todos os dias olhava para o telemóvel sem coragem para lhe falar directamente; perguntava aos amigos, perguntava à Isabel, enviei-lhe mensagens e ele respondeu — isso tranquiliza-me um pouco.
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Morreu o Julião. E eu percebi que todos os pretextos que encontrei para ficar em Lisboa mais estes dias mascaravam a certeza de que se regressasse a Paris não poderia despedir-me dele. Nas últimas semanas todos os dias olhava para o telemóvel sem coragem para lhe falar directamente; perguntava aos amigos, perguntava à Isabel, enviei-lhe mensagens e ele respondeu — isso tranquiliza-me um pouco.
Não é tempo para falar do significado e valia da sua obra; nem consigo racionalizar isso agora. O Julião que eu vejo aqui, o que me importa, é aquele que, ainda mal me conhecendo, percorreu comigo toda a ARCOmadrid (1985) apresentando-me aos maiores galeristas do tempo; é o que me emprestou a sua casa de Sintra para as primeiras férias que pude passar com a minha filha mais velha; é o que se assumiu como padrinho da segunda e com quem passámos belas tardes em família; é aquele que de modo mais livre e mais radical expunha e discutia os seus gostos e nos levava sem medo ao atelier ver as suas obras a nascer; é aquele com quem tanto me diverti nas noites longas de Lisboa dos anos 80; é quem me pediu e inspirou alguns dos textos que mais me agradam ter escrito, esperando modestamente que possa com eles ter retribuído tudo o que ele me deu; é aquele com quem eu tive alguns dos jantares mais vivos, alegres e caóticos (de Veneza a Londres, de Madrid ao Porto, de Paris a Lisboa); é daqueles artistas cujo exemplo melhor me fizeram pensar na ambição e nos limites de internacionalização da arte portuguesa do último quartel dos século passado e primeiros decénios deste século; é o que ofereceu aos tantos amigos de que sabia rodear-se as festas mais extraordinárias e mais generosas nas suas maravilhosas casas do Estoril; é aquele a quem eu pedi que desenhasse a capa do meu primeiro livro de poemas (Máquina do Mundo), o que fez de modo maravilhoso e certeiro.
Finalmente, fico feliz agora por ter podido atender ao último convite que me dirigiu, para comissariar, em 2019, uma das suas últimas exposições: na Sala do Tecto Pintado do Museu Nacional de Arte Antiga, a sua obra dialogou com desenhos italianos e italianizantes do século XVI. Intitulei-a A linha que fecha também abre, e é esse o título, um título que abre para o futuro e não para a morte, que gostaria de poder dar agora a este comovido testemunho de amizade com uma das pessoas mais generosas que conheci.