O mito da renda acessível
A renda acessível é a caixa de areia para onde nos mandaram brincar, e onde fingimos que estamos realmente a construir algo sólido.
Não é possível dar uma resposta definitiva a um problema se continuarmos a assentar as propostas nas mesmas premissas que levaram à sua existência - e a renda acessível representa isso mesmo.
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Não é possível dar uma resposta definitiva a um problema se continuarmos a assentar as propostas nas mesmas premissas que levaram à sua existência - e a renda acessível representa isso mesmo.
O Programa de Arrendamento Acessível (PAA) afirma ser “um programa de política de habitação que visa promover uma oferta alargada de habitação para arrendamento a preços compatíveis com os rendimentos das famílias”, estabelecendo para cada tipologia, em determinado território, um valor máximo de renda. No entanto, ao lermos o programa, vemos que os valores são calculados em função dos valores praticados no mercado livre, com uma redução de 20%. Ora, será possível afirmar que um valor é acessível a uma determinada família se a fórmula não tem os rendimentos dessa família em consideração ou, pelo menos, os valores médios dos rendimentos nacionais?
Podemos ver nos mapas, de Lisboa e do Porto, a comparação entre o custo do arrendamento no mercado livre em 2017 e o seu preço ‘acessível’, 80% do valor de mercado, no ano de 2020. A comparação com o ano de 2017 não é aleatória; nesse ano, as Nações Unidas emitiram um parecer, nada favorável, sobre as condições das habitações em Portugal; surgiu a Secretaria de Estado da Habitação; o Porto foi considerado o melhor destino europeu e Lisboa ganhou o Óscar do Turismo, sendo considerada a “Melhor Cidade do Planeta”. O crescimento dos problemas de habitação e os prémios do turismo são indissociáveis, simultaneamente causa e consequência um do outro. O investimento intenso em determinadas zonas da cidade, potenciando a renovação urbana (nome comum para gentrificação) e o consequente aumento do interesse no turismo e a adaptação das actividades económicas a este sector (turistificação) fizeram aumentar os preços das habitações no mercado.
Vemos no mapa que, na freguesia do Bonfim, no Porto, a renda acessível para um apartamento T1 é de 523 euros; contudo, a renda média de mercado desse mesmo apartamento, em 2017, era de 452 euros. Ou seja, a renda dita acessível hoje é quase 100 euros mais cara do que a renda no mercado livre há apenas três anos. Na freguesia de Arroios, em Lisboa, as rendas praticadas no mercado livre para uma habitação T1, em 2017, rondavam os 628 euros; três anos depois, em 2020, o arrendamento acessível para o mesmo apartamento previa valores próximos dos 634 euros mensais. A turistificação e a gentrificação não acontecem da noite para o dia e muito menos acontecem sozinhas. Não é coincidência que o Bonfim tenha sido considerado o “Bairro mais cool do mundo” em 2020 pela revista Time Out, e que no ano anterior tenha sido a freguesia de Arroios a ficar com o prémio. Tem sido dito que a Renda Acessível chegou para dar resposta à dificuldade das famílias em conseguir pagar uma habitação aos preços de mercado; no entanto, feitas as contas, temos hoje de gastar mais na renda do que gastávamos antes de existir o programa.
Vemos, por um lado, que é também ao abrigo do conceito de renda acessível que a Câmara do Porto tem lançado novos projectos, como o do Monte Pedral ou do Monte da Bela, alienando terrenos municipais e permitindo aos investidores privados construir nesses terrenos a troco de algumas habitações onde será praticada renda acessível. Podemos aceitar estas premissas sabendo que os valores de mercado continuam a subir? Por outro lado, em Lisboa, a renda acessível já entrou no plano de gestão do património público, integrando o sistema de rendas juntamente com a renda apoiada. Não é aceitável que os municípios prefiram investir parte das suas verbas neste tipo de soluções e alienar parte do seu território, em vez de aumentarem o parque público de habitação para quem mais precisa. Não é aceitável que, às custas de cada vez mais e mais pessoas em carência habitacional, não tendo intenções de intervir no mercado imobiliário, o estado e os municípios se possam gabar de praticar rendas acessíveis para a classe média.
As intenções apaziguadoras na qual é envolvida a renda acessível nada fazem pelas pessoas com as maiores carências, nada fazem para impedir que os valores de mercado continuem a subir, nada fazem para resolver o problema. É mais uma ferramenta através da qual a habitação é tratada como mercadoria, através da qual o nosso acesso a uma habitação digna está entregue aos mercados, através da qual se empurra para um futuro cada vez mais longínquo o direito consagrado na Constituição, que atribui ao Estado o dever de assegurar, para toda a gente, “um sistema de renda compatível com o rendimento familiar”.
A renda acessível é, assim, a caixa de areia para onde nos mandaram brincar, e onde fingimos que estamos realmente a construir algo sólido.