A realidade dura dos factos: a esperança depois da luta (3)
Neste tempo pós-covid (haveremos de sair desta pandemia com um coração mais sensível ao Outro, assim espero!), impõe-se, sr. primeiro-ministro, fazer da Educação não o terreno para mais alunos amestrados, todos com computadores nas salas de aula, mas sim fazer regressar aos bancos das escolas o livro. O livro!
Por um ministro da Educação que seja culto, tenha conhecimento da realidade das escolas, experiência docente no terreno, que reconheça a importância dos professores.
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Por um ministro da Educação que seja culto, tenha conhecimento da realidade das escolas, experiência docente no terreno, que reconheça a importância dos professores.
Contra a instalação da mentalidade tecnocrata e burocrata que fará esfacelar direitos e garantias e rouba já a hipótese de haver igualdade social de facto no nosso país, é essencial que, na formação de professores, se aposte não no digital, mas na leitura; não no tecnológico, mas na leitura de obras literárias, de filosofia, de História; é essencial que as Artes e a Cultura tenham, mais do que apoios, políticas de longo prazo, com concretas ajudas financeiras: preservação do trabalho, melhoria salarial, abertura de casas de espectáculo, verdadeira formação de actores, acções de formação que convoquem o pensamento, a análise social, rasgando atavismos e vícios bem portugueses (a inveja, a intriga, a incapacidade de admirar o próximo, o miserabilismo, o medo de existir).
No ensino, só com currículos que tenham as humanidades como coluna vertebral da formação das crianças e adolescentes será possível perspectivar um futuro mais democrático. É Shakespeare, não é Dan Brown quem mais próximo está de compreender a natureza de que o Homem é feito. É Al Gore, não é Bill Gates quem mais fundo foi na compreensão de que a defesa do Planeta só será possível se o homem-massa for combatido. Só uma escola humanista, ancorada na leitura do livro, poderá formar para uma cidadania constituída por cidadãos, não por indivíduos, os quais, presos aos ecrãs, se especializam em espiar os outros, em padronizar e decapitar quem lhes pareça incómodo.
Tal esforço pede, de todos os agentes culturais – a começar pelo Ministério da Educação e, também, o da Cultura –, um compromisso de carácter: que se procure, fora dos partidos, nos independentes, quem, com provas dadas, possa ajudar ao tempo que se avizinha e que será um tempo de crise social profunda. É ainda de um ensino centrado no acto de pensar e de agir que falo. Falo de uma escola e de uma universidade que se libertem da camisa-de-forças burocrática que levou tantos a pedir reformas antecipadas com prejuízos sérios na sua vida familiar; falo de uma escola e universidade que, querendo ser locais onde se possa respirar, compreenda que tal não é possível se apenas o carreirismo medra e se se condenam ao silêncio muitos que, fazendo diferente, tendo outros caminhos profissionais, não quiseram seguir (ou não puderam seguir), como formigas no carreiro, o caminho mais óbvio. Palavra, pensamento e acção, disso a nossa educação está sedenta e não são as luzes impuras dos múltiplos ecrãs que podem conduzir as nossas crianças e os nossos jovens à energia vital que move para o saber.
Relembro ainda Vigotsky: “O pensamento dá significado à palavra, a qual, sem significado, é um som vazio. [...] A palavra, na sua relação com o pensamento, é um processo vivo de nascimento” e é justamente o ensino das palavras que devemos, neste tempo futuro, aperfeiçoar. Ensinar desde o 1.º ciclo a tradição popular, os rimances, a poesia, o teatro, lembrar a riquíssima expressão do humano através dos mitos e dos símbolos, através da música. No 1.º ciclo, mais do que fichas de gramática – e o mesmo se diga para o 2.º ciclo –, é essencial que as crianças e os pré-adolescentes gostem de estar nas aulas. O que temos hoje é uma prática pedagógica que oscila entre a aridez gramatical – o saber de cor sem compreender – e a total ausência de uma prática de didáctica da poesia, do teatro, do conto para crianças e jovens. O pensamento (tecido sináptico, tessitura discursiva, rede semântica, morada dos signos) e a linguagem são duas faces da mesma moeda, linguagem é espelho do pensamento ("A linguagem é figura do entendimento” é a frase de abertura da nossa primeira gramática, a de Fernão de Oliveira, de 1536), mas sem o pensamento a linguagem será como um nevoeiro e é nesse nevoeiro que muitas crianças e jovens vivem a sua vida escolar, chegando às Universidades sem nada saberem de facto, quantas vezes sem saberem escrever!
Por isso, neste tempo pós-covid (haveremos de sair desta pandemia com um coração mais sensível ao Outro, assim espero!), impõe-se, sr. primeiro-ministro, fazer da Educação não o terreno para mais alunos amestrados, todos com computadores nas salas de aula, mas sim fazer regressar aos bancos das escolas o livro. O livro! Os programas escolares deveriam considerar uma antologia de textos que, do 1.º ciclo ao secundário, fornecesse, tanto quanto possível, o contacto das gerações jovens com o património que é o seu: o português, o ibérico, o europeu, integrando, claro, todas as outras formas da cultura. Um programa poligonal de ensino. Para isso exige-se um ministro da Educação que, incansavelmente, empenhadamente, se dirija aos pais e aos filhos – os alunos –, faça pedagogia não apelando ao digital, mas pondo a tónica na leitura. Um ministro que tenha lido Vigotsky, que vá às escolas, reúna os professores e com eles lute por uma dignificação desta profissão que é âncora do país. Sem professores cultos Portugal não formará quadros de qualidade.