Enquanto Vasco da Gama dormia
Tiago de Matos Fernandes é advogado e consultor de desenvolvimento internacional. Nessa qualidade, já trabalhou no desenho e implementação de projetos financiados por organizações bilaterais e multilaterais, em mais de 40 países, ao longo de 25 anos. Neste texto faz uma reflexão sobre a memória colonial, o escravismo e o racismo, entrecruzando a História e as estórias particulares dos seus algozes e das suas vítimas, a partir da sua experiência no terreno, em particular na África subsaariana.
Faltavam poucos meses para as primeiras eleições autárquicas do país, quando o presidente Chissano decidiu visitar a Ilha de Moçambique, sem pompa, mas com circunstância. Como não tinha o tempo contado, acabou por dar um salto ao Centro de Recursos, o espaço localizado em frente à mesquita central, onde a ONG para a qual eu trabalhava como voluntário organizava ações de formação sobre os ofícios tradicionais da ilha. Um séquito leal acompanhava-o.
Pouco tempo antes, eu tinha organizado uma exposição sobre o património da ilha, com os alunos da escola secundária. Ao longo de duas salas, a exposição mostrava desenhos e pinturas juvenis da Fortaleza de São Sebastião, do Palácio do Governador, dos edifícios públicos, das igrejas, das mesquitas e do templo hindu, assim como fotografias dos grupos de dança do tufo, além de amostras de contas de vidro e pedaços de faiança recolhidos na praia (libertados, com o movimento das marés, do fundo de navios árabes e portugueses naufragados ao largo). Zainal, o irmão de Rahimo Satar, proprietário do Cinema Nina, emprestou-nos duas belas imagens a preto e branco que viriam a ocupar o lugar central da exposição: a fotografia de uma corrida de touros realizada no interior da fortaleza de São Sebastião, na época colonial; e uma fotografia da estátua de Vasco da Gama em grande plano, com o Palácio de São Paulo ao fundo.
Depois de ter realizado uma visita aos ateliers do Centro de Recursos, o presidente Chissano, para nossa surpresa, manifestou grande interesse em ver a exposição. Eu observava tudo de fora, tentando manter-me discreto o tempo todo, desconfortável com o peso do protocolo. Porém, não consegui ficar assim por muito tempo: “MX”, meu colega de trabalho, chamou-me à margem e disse-me que não havia mais ninguém que pudesse ser guia do senhor presidente, senão eu próprio. Por mais que eu quisesse, não tinha como fugir, nem para onde, a não ser que quisesse importunar pessoalmente o chefe de Estado.
Com os olhos, “MX” fez-me um sinal e eu furei a cortina de gente que cercava Joaquim Chissano, pondo-me humildemente à sua disposição. Fi-lo consciente de que aquela era uma oportunidade única — porventura a derradeira — de privar com um dos heróis da revolução moçambicana; e consciente também de que aquela vez que fui levado para a esquadra por inadvertidamente não ter parado a minha bicicleta a menos de cinquenta metros da bandeira nacional, no momento em que era arriada e se cantava o hino, era uma experiência menor, quando comparada com a suprema provocação que poderia causar com aquela exposição descaradamente luso-tropicalista.
Ao longo da minha apresentação, Chissano não tirava os olhos do que via, enquanto se deixava levar pelo fio de História, contado pela voz de um jovem voluntário, branco, português e, sobretudo, muito ingénuo.
Paciente e silencioso, deixou-me terminar a explicação, antes de, finalmente, pousar os olhos sobre mim, com um sorriso amável. O séquito percebeu que ele ia tomar a palavra. “Os portugueses fizeram um excelente trabalho na ilha”, começou por dizer. Não pude duvidar da sua sinceridade, pois a obra estava à vista de todos, e eu também pensava o mesmo.
Seguidamente, olhou para o seu staff, procurando a sua aprovação e a inspiração para o que iria dizer a seguir: “Porém...” — prosseguiu — “aqueles edifícios que vocês construíram no Lumbo, do outro lado da ponte... são mesmo feios!...”. Ao dizê-lo, abriu a boca e presenteou-me com um sorriso de Mona Lisa, bem ao seu estilo.
Mentalmente tive de lhe dar razão outra vez. É verdade. Não sei o que nos deu para tamanha falta de gosto, aqueles caixotes de três andares, dizem que foram construídos no início dos anos setenta, são horrorosos, não têm jeito nenhum. Encaixei a crítica e sorri, anuindo na sua observação.
Como eu começasse a achar que tinha ganho a confiança do presidente, ele guardou algum silêncio, antes de completar o raciocínio, assegurando-se primeiro que todos o estavam a ouvir. “Não dá mesmo para perceber o que se passou...” — disse-me, baixando os olhos. E voltando a fazer uma breve pausa, voltou a olhar para a fotografia que tinha à sua frente, para rematar, sem sequer olhar para mim: “Se calhar era já a pressa para se irem embora...”.
O pessoal que o rodeava abriu o sorriso com grande satisfação com aquela alfinetada e fitou-me, em silêncio, para ver a minha reação à provocação do presidente. Não sei se ele esperava alguma réplica da minha parte, porque eu senti-me a desvair e não tive ânimo para defender a honra da lusa pátria. Que poderia fazer? Chissano preparara-se uma vida inteira para mudar o curso da história do seu país — já eu era apenas um rapaz de 24 anos, que achava candidamente que, três décadas depois, as contas entre Portugal e Moçambique estavam todas saldadas.
Atordoado, limitei-me a replicar com um sorriso acabrunhado, e procurei um buraco para me esconder. Aquela provocação rebentou na minha cabeça como um tiro da Kalashnikov que enfeita a bandeira de Moçambique.
Quando voltei a sentir a pulsação, pensei: “Puseste-te a jeito... agora toma... embrulha e aprende!”. Dando por terminada a visita, despedi-me, peguei nas minhas coisas e fui à minha vida.
Contando carneiros até adormecer
De regresso a casa, sentei-me junto à janela do meu quarto, com vista para a Igreja da Misericórdia, no coração da “cidade de pedra e cal”. A Igreja ficava paredes meias com o Palácio de S. Paulo, em frente do qual, virada para o continente, se localizava a praça com o coreto e o pedestal da estátua de Vasco da Gama.
Apenas o pedestal, porque, naquele tempo, Vasco da Gama pernoitava nas oficinas da capitania. Os pés de cobre mantinham-se fixados à base, apoiada sobre o chão, na posição ereta; o que restava do navegador recostava-se, numa grande cama de metal rolante, de barriga para cima, olhando fixamente a humidade do telhado. Vasco da Gama para ali fora trasladado, nos dias mais quentes da revolução, quando foram mandadas derrubar todas e quaisquer figuras que fizessem recordar os horrores da ocupação colonial. E foi assim que para ali ficou, patético, contando carneiros até adormecer, sonhando que alguém por ali passasse e se lembrasse dele.
Na rua da Igreja, a seguir ao café Âncora d‘Ouro, já perto da contracosta, vivia Joaquim, a sua mulher e os filhos, numa antiga casa colonial, ocupada por várias famílias. Joaquim era o zelador da casa de hóspedes da OIKOS, onde eu me encontrava alojado.
Como tantos outros, Joaquim viera do mato nos tempos da guerra civil, em busca de um refúgio seguro na ilha. Era um machambeiro (camponês) de origem macua, que aqui teve de se reinventar como cozinheiro. E que talento tinha! Os melhores filetes de peixe-papagaio da ilha saiam sempre do seu grelhador.
Joaquim aprendera depressa e era um trabalhador esforçado, que acabava sempre a falar com desdém das idiossincrasias dos macuas da ilha, e da sua inenarrável preguiça. Andava pelos trinta e muitos anos, e tinha uma alma alegre, adornada por uma enorme fileira de dentes brilhantes.
Aos fins-de-semana, Joaquim escapulia-se da sua casa, atravessava a rua dos Arcos e chegava rapidamente à praça da capitania. O fantasma de Vasco da Gama nunca teve sequer o prazer de ver a sua sombra, porque Joaquim seguia a passo apressado, na direção da “cidade de macuti” — o nome dado às folhas de coqueiro espalmadas sobre os telhados das casas de adobe. Era ali que se situava o recinto do antigo paiol, e era ali que, todos os fins-de-semana, Joaquim vinha ouvir uma banda de músicos tanzanianos interpretar temas clássicos do soukous congolês.
A cadência frenética das guitarras era amplificada por poderosas colunas de som, que mantinham toda a gente acordada. Ninguém se incomodava, muito pelo contrário: uma horda de ilhéus inundava regularmente o espaço e ali ficava a dançar até de madrugada. Nesse lugar iniciático, as munições combatiam-se com decibéis. Cada decibel a mais representava menos um fuzil do lado do inimigo. Ali, no coração bantu da ilha, o vetusto império era obrigado a ficar à porta.
Quando de madrugada o encontrava deitado na esteira, e lhe perguntava o que andara a fazer noite fora, Joaquim rasgava sempre um sorriso do tamanho do mundo, antes de me responder com um ar esforçadamente sério, trocando os dês pelos tês, como um verdadeiro macua: “Nata patrrão, nata!!”. Acabava sempre por rematar a resposta soltando uma gargalhada fenomenal, antes de voltar a adormecer com uma criança feliz. E com isso se encerrava mais um interrogatório, até à próxima sessão.
Um dia, quando se celebrava o quinto centenário da chegada de Vasco da Gama a Muhipiti — o nome dado pelos ilhéus à Ilha de Moçambique —, perguntei-lhe se sabia que o grande navegador ali tinha chegado havia precisamente quinhentos anos. Joaquim encostou-se à janela, levou a mão pensativa ao queixo, olhou o vazio e disse finalmente: “Xiiii, patrrão! Eu só cheguei há oito anos e já estou tão farto!”.
Mentalmente, soltei uma risada farta. E, no entanto, a resposta do Joaquim fazia todo o sentido. Na verdade, só um tonto suportaria viver meio milénio naquela sepultura do Índico. Como é que alguém se entretém tanto tempo parado naquela língua de coral, onde Judas perdeu as botas, não há machambas e a água é salobra?
E mais, o que faria esse tal de Vasco da Gama, para se suster e à sua família? Biscates? Poesia? Bahhh!... Para isso já lá tinha estado o Camões, aborrecido e teso como um carapau, sem dinheiro sequer para regressar a casa.
Provavelmente, esse tal de Vasco da Gama era só mais um inútil macua, que passava ainda mais fome do que ele, que tinha cinco bocas para alimentar. Não, definitivamente, esse Vasco não regulava bem, e só mesmo um mucunha (branco) como eu para lhe falar da sua chegada a Muhipiti.
A conversa terminou ali, e nunca mais voltamos a falar do assunto. Como as autoridades também não quisessem celebrar a efeméride, fui eu sonhar com a entrada da armada na baía do Mossuril.
Regresso ao pedestal
Vasco da Gama aportou na ilha no dia 2 de março de 1498, na sua primeira viagem à Índia. O sultão da ilha (Mussa Bin Bike, cuja corruptela viria a dar nome ao país) recebeu-o inicialmente com simpatia, e depois com desconfiança, quando percebeu que o visitante não era muçulmano, mas sim cristão; mas mesmo assim concordou em conceder-lhe dois pilotos para lhe mostrar o caminho até à Índia. O que Vasco da Gama não sabia é que os pilotos tinham sido secretamente incumbidos de o matar à traição, logo que surgisse a oportunidade, o que apenas não sucedeu porque um deles fugiu e o outro acabou por dar conta dos planos.
A sua passagem pela ilha deu origem, oito anos depois, ao início do processo de edificação e ocupação do lugar pelos portugueses, fundamental como porto de abrigo das intempéries causadas pelas monções e entreposto comercial servido de um canal navegável junto da costa. O património físico da ilha é maioritariamente o resultado dessa conturbada passagem da armada pela baía do Mossuril.
O que a lenda esconde é que Vasco da Gama era na verdade muito rude e violento; que pilhou navios, assaltou portos, avassalou povos, matou e torturou muita gente; e também que desejou a todo o custo ganhar fortuna e estatuto social, por ser filho ilegítimo de baixa nobreza.
Por essa razão, quando, pouco tempo depois da visita do presidente Chissano, as autoridades decidiram autorizar a recolocação da estátua de Vasco da Gama no pedestal da praça de São Paulo, a surpresa foi total. O que é que lhes passou pela cabeça? Como é que a FRELIMO, presumivelmente tão hostil aos símbolos da ocupação colonial, suportava tal provocação? O que é que poderia explicar a sublimação do homem a quem se devem os primórdios da ocupação colonial portuguesa e a transformação da ilha numa gigantesca plataforma comercial destinada ao tráfico de escravos em grande escala?
As perguntas sempre me intrigaram, mas, numa rara conversa com o xehe Abudo Amur, obtive uma parte importante da resposta.
Abudo Amur era, à época, o mais respeitado líder religioso da Ilha de Moçambique. Para isso muito contribuía o facto de ser filho do venerável Amur bin Gimba, natural das Comores, fundador da primeira confraria de origem sunita da ilha.
Abudo Amur (ou Gimba, como era mais conhecido) herdou os pergaminhos do pai e desenvolveu a humildade dos homens grandes: “Chamo-me Abudo Amur Rahamane. Abudo significa escravo. Mas agora escravo de quem? De Rahamane, Deus”. Acaso eu não compreendesse a importância simbólica do seu apelido, o xehe explicava-me: “Não pode ser só Abudo, Abudo é um contínuo. De onde? De onde ele trabalha. Tem de ser um contínuo do Conselho Executivo, ou da Associação dos Amigos da Ilha”.
Na juventude de Abudo Amur ainda havia “escravos sem ser de Deus”. Traficavam-se clandestinamente e eram levados para São Tomé e Príncipe onde faziam trabalho pesado. Mas, explicou-me, era já o declínio de uma época de tráfico de escravos em grande escala, que nos séculos XVIII e XIX tinha dado azo a muitas disputas entre mercadores portugueses, franceses, brasileiros e afro-asiáticos ao longo dos principais portos do litoral norte de Moçambique.
Os negreiros, aliados aos chefes macuas, majojos e ajauas, capturavam e vendiam contingentes significativos de escravos, que iam buscar até o lago Niassa e com eles desciam até ao litoral, na esteira das caravanas de marfim, acabando depois por exportá-los para o Brasil. Estima-se que, apenas entre 1825 e 1830, foram vendidos no Rio de Janeiro 25 mil escravos oriundos da Ilha de Moçambique.
O velho Gimba sabia muito bem que o tráfico de escravos fora um negócio em que havia poucos inocentes. Além de esclarecido, era um homem alto e elegante, com as suas balalaicas engomadas e o seu cofió enfiado no cocuruto da cabeça. As cataratas denunciavam-lhe a idade física, mas não o espírito. Não precisava de falar muito para exibir a sua inteligência suave.
Os “Kennedy da África Ocidental”
Ao longo dos anos seguintes, tive a oportunidade de confirmar e alargar a lição do velho Gimba. Em linguagem académica, diria que coligi vários estudos de caso, em vários países.
Quando foram construídos os primeiros entrepostos esclavagistas no litoral do então Reino de Daomé (hoje Benim), eram os guerreiros da etnia fon que capturavam os escravos e posteriormente os vendiam aos negreiros, que depois os transportavam, em grandes quantidades, para o Brasil e para as Caraíbas.
De resto, um dos maiores negreiros de que há memória na Costa do Ouro, não era sequer natural de Portugal, mas sim do Brasil. Francisco Félix de Souza (mais conhecido por Chachá) nasceu na Bahia, filho de português e de índia, e na idade adulta ocupou-se do forte português de São João Baptista de Ajudá. Ao aliar-se ao Rei de Daomé, o seu maior aliado no comércio de escravos (que todos os anos sacrificava umas boas dezenas de prisioneiros de guerra, para honrar os seus antepassados), Chachá enriqueceu principescamente. Morreu nonagenário, deixando viúvas 53 mulheres, dezenas de filhos e, já na sua fase de decadência, dois mil escravos. Paradoxalmente, grande parte dos africanos que conheci venera os descendentes da família Souza, como se fossem os “Kennedy da África Ocidental”. Na verdade, não surpreende que os Souzas sejam muito numerosos, a ponto de ter encontrado descendentes de Chachá nos confins do Sahel...
No Gana, mais ainda do que a imponente feitoria de São Jorge da Mina, surpreendeu-me ter encontrado nove fortes construídos pela Companhia Sueca da África e pela Companhia Dinamarquesa das Índias Ocidentais, em apoio ao comércio de escravos em grande escala, assinalando a presença destes reinos escandinavos em toda a Costa do Ouro, entre meados do século XVII e início do século XIX. Afinal, aqueles que tantas vezes apontam o pecado original do império português, como inibidor de uma discussão objetiva e imparcial das modernas políticas de desenvolvimento desses países, também tiverem a sua quota-parte de responsabilidade no tráfico transatlântico.
No Togo, visitei Agbofrafo, onde John Henry Wood, um traficante de escravos escocês, construiu uma casa em estilo afro-brasileiro, suficientemente distante da orla marítima para que não pudesse ser vista pelas autoridades, numa altura em que o tráfico de escravos era proibido (e policiado) pela Inglaterra. Wood escondia centenas de escravos em condições deploráveis, num vão com menos de um metro de altura, localizado sob o estrado de madeira da sala principal, ao qual ainda hoje se pode aceder através de um alçapão.
Na Gâmbia, explorei a minúscula ilha de Santo André, batizada por Luís de Cadamosto, navegador veneziano ao serviço da coroa portuguesa, em honra do oficial homónimo falecido durante a célebre expedição de exploração do rio Gâmbia, e que ali foi enterrado há 580 anos. A ilha (hoje St James Island) tornou-se depois num pequeno entreposto dos traficantes de escravos britânicos, que para aqui os traziam, com o objetivo de os enfraquecer com um jejum forçado de duas semanas, antes de serem levados para Gorée, no Senegal, e daí para as Américas. Quanto mais fracos, menos capazes seriam de se rebelar.
Em Gorée, reencontrei uma irmã gémea da Ilha de Moçambique. Praticamente do mesmo tamanho, também dividida entre uma cidade de pedra e uma cidade de “macuti” (ainda que ali situada numa elevação e não numa depressão). Também ela património da humanidade, elevada a must see do turismo cultural africano, Gorée é basicamente uma ilha-postal com uma interessante arquitetura colonial, mas em que uma morna amnésia parece adoçar os traços mais grossos do seu passado escravocrata.
Tristemente, foram os próprios senegaleses (com o presidente Léopold Senghor à cabeça) que decidiram promover a imagem de Gorée como lugar central na história do tráfico transatlântico, com o objetivo de a vender como atração turística — o que efetivamente lograram fazer. Pior do que isso, as representações estereotipadas dos escravos, que também pude ver em Zanzibar, nas Maurícias, em Barbados, na Jamaica e no Haiti — ora acorrentados, ora agachados, ora fazendo fila para embarcar nos navios negreiros — pouco ou nada informam sobre o impacto real e simbólico da sua condição.
“Aqueles que atacam juntos”
As notas do meu diário de viagem prosseguem. Mas não apenas com estórias do passado longínquo, ou estórias com os algozes de sempre.
Infelizmente, vi muitos registos de ódio e racismo entre os próprios africanos — ou melhor, para ser mais rigoroso, entre os nascidos no continente africano — apenas parcialmente compreensíveis no respetivo contexto histórico.
A começar por muitos dos amares (os etíopes de língua amárica), para quem africanos são os negros falantes das línguas bantu, e não eles, os “castanhos”, de cabelo liso e nariz afilado, os falantes de língua semítica, a elite que pôs a Etiópia a salvo do colonialismo. Não fossem os africanos ignorar que, de acordo com o Kebra Nagast (a epopeia da dinastia salomónica, escrita há mais de 700 anos), da visita da Rainha de Sabá ao Rei Salomão nasceu Menelik, o primeiro imperador da Abissínia, que lhes trouxe de Jerusalém a Arca da Aliança, até hoje guardada na cidade sagrada de Axum; não fossem eles desconhecer que na Etiópia viveu e morreu Haile Selassié, último descendente da dinastia salomónica, para muitos Cristo reencarnado no seu regresso à Terra. O sentimento de excecionalidade dos etíopes assumiu tais proporções que, há muitos anos, alguns diplomatas chegaram mesmo a considerar, em privado, que a sede da União Africana (antigamente designada “Organização da Unidade Africana”), localizada em Addis Abeba, deveria ser mudada para um país verdadeiramente africano!
Já na Libéria, os américo-liberianos, descendentes dos escravos americanos libertos com a ajuda da American Colonization Society e do presidente James Monroe, que no século XIX fundaram o país, continuam a dominar a vida política, social e económica da Libéria, perpetuando o processo de segregação dos povos indígenas que encontraram à sua chegada. Sam Gibson, o fleumático dono do Krystal Ocean View Hotel, onde fiquei alojado na minha primeira missão em Monróvia, fazia questão em intimidar quem não fizesse parte do seu inner circle. Depois da guerra civil da Libéria, chegou a usar um cartão pessoal onde se podia ler “Sam Gibson. Hotel Owner. Friend of the President” (“Sam Gibson. Proprietário de Hotel. Amigo do Presidente”). À data, o Presidente da Libéria era outro américo-liberiano, de seu nome Charles Taylor, entretanto condenado e preso por crimes contra a humanidade. De resto, a proteção dos interesses pessoais e patrimoniais dos américo-liberianos foi ao ponto de justificar, até aos dias de hoje, que apenas possa ser atribuída cidadania liberiana aos negros, ou descendentes de negros.
Inevitavelmente, o Ruanda é o exemplo mais acabado do ódio racial, como força mobilizadora de destruição em massa. É impossível ficar indiferente ao genocídio que, em 1994, matou 800 mil pessoas (entre tutsis e alguns hutus moderados).
É preciso não esquecer que se tratou de uma ação organizada ao milímetro, com o apoio da elite política nacional, e que foi executada em apenas 100 dias, às mãos das milícias radicais hutu, com especial destaque para os “interahamwe” (“aqueles que atacam juntos”). Mas também às mãos dos próprios vizinhos hutu. Ou dos próprios cônjuges, forçados a perpetrar os crimes, por serem de etnia diferente. Ou às mãos de colegas de escola, tão crianças como eles. Com catanas, paus e machados, distribuídos diligentemente pelo próprio governo.
Em Kigali, visitei o Memorial do Genocídio, onde uma laje de cimento, dividida em secções, esconde uma vala comum, onde jazem 250 mil corpos, 30% da população tutsi, à data do genocídio. Foi-me impossível digerir os números de forma racional. Julgo ter tido uma experiência semelhante àquela de quem visita Auschwitz-Birkenau. Levei um murro no estômago e fiquei sem palavras.
Mas a experiência que mais me impressionou foi a visita à Igreja de Nyamata, na região de Bugesera (onde, à data do genocídio, viviam sobretudo tutsis). Assim que o genocídio começou, milhares de tutsis correram para a Igreja Católica de Nyamata, na esperança de aí não serem atacados. Puseram um ferrolho na porta de ferro, trancaram-se lá dentro e rezaram. Rezaram muito, foram forçados a jejuar, e aguardaram a misericórdia de Deus.
Os hutu, mesmo aos milhares, não conseguiram abrir a porta da Igreja. Tiveram de chamar os “interahamwe”, que só apareceram alguns dias depois. Com uma granada, rebentaram o ferrolho e parte do portão, e entraram na Igreja, onde encontraram uma horda de gente faminta, demasiado fraca para oferecer qualquer resistência.
O que se seguiu foi uma selvajaria indescritível. Com revólveres, machados, facas, paus e catanas, esquartejaram todos os fiéis que encontravam no interior da Igreja. Fizeram-no com requinte e compassadamente. Liquidaram um a seguir ao outro. Homens, mulheres, crianças, idosos – afinal não passavam todos de “inyenzi” (baratas).
Dez mil tutsis morreram naquela manhã. O cenário foi tão deplorável e tanta gente morreu, que os cadáveres apodreceram antes que pudessem ser retirados.
Mas as roupas e os pertences ficaram. Até hoje. Ficaram exatamente como se apresentavam naquela manhã. Ficaram no mesmo lugar onde se encontravam os donos, a recordar a sua memória. Ficaram como fantasmas alinhados para assistir a uma missa eterna.
Outras roupagens, outros móbeis
Com o passar dos anos, compreendi que a história do escravismo e do tráfico transatlântico é desconhecida em Portugal. Faz falta a criação de um espaço museológico que explique ao grande público a realidade do comércio de escravos. Não só para contar a história como ela foi (e não como gostaríamos que ela fosse), mas também para relatar algumas das estórias desses doze milhões e meio de africanos arrancados violentamente às suas origens — dos quais cerca de seis milhões transportados em navios negreiros portugueses e brasileiros —, antes de chegarem a destino incerto.
No entanto, compreendi, também, que embora o tráfico transatlântico de escravos tenha sido uma mancha horrível na história da humanidade, não foi apenas obra dos europeus. Compreendi igualmente que muitos daqueles que mais julgam o pecado original da nossa expansão marítima, também acabaram por participar de forma directa no comércio de escravos. E que os africanos também têm uma relação dúplice com a história, ora criticando, ora mesmo tolerando algumas das figuras que ficaram associadas ao tráfico transatlântico. Compreendi ainda que o escravismo pode ser vendido como um poderoso instrumento de atração turística. E que o ódio e o racismo, embora possam ter sido aproveitados em benefício das potências coloniais (como foi o caso evidente da Bélgica no Ruanda), não são filhos únicos do escravismo, podendo florescer mesmo onde ele não existe. E compreendi finalmente que o escravismo e o trabalho forçado continuam a existir, com outras roupagens e outros móbeis, um pouco por todo o mundo, mesmo depois da abolição do comércio de escravos e das independências africanas. A estória pessoal da minha amiga Alima (nome fictício) permitiu-me conhecer esse terrível paradoxo.
A “mulher nova”
Alima, natural da Ilha de Moçambique, foi uma dessas jovens mulheres que, logo a seguir à independência, foi levada à força para um “centro de reeducação”. Acusadas de prostituição, muitas dessas mulheres eram apenas mães solteiras, ou mulheres indocumentadas, ou simplesmente vestiam-se de maneira diferente, pintavam-se e usavam batom. No auge da revolução, a FRELIMO seguia à risca a cartilha marxista e tinha a convicção de que, através da disciplina e dos trabalhos forçados, essas mulheres se regenerariam e transformariam na “mulher nova”, livres dos vícios burgueses do capitalismo e da mancha do colonialismo.
Os “centros de reeducação” foram a versão moçambicana dos campos da morte do Camboja e dos gulags soviéticos, e traduziram-se em milhares de mortes e desaparecimentos. Quem para lá fosse enviado, não beneficiava de qualquer proteção legal e estava à mercê dos funcionários do SNASP, o serviço paramilitar e de inteligência do governo de Moçambique.
A permanência nos centros funcionava como no tempo colonial, na base do chibalo, ou seja, na base da semiescravidão. Alguns dizem mesmo que era pior que chibalo, pois não sabiam sequer quem era o “patrão”. Eram verdadeiros “escravos sem dono”.
Alima também não tinha “patrão” nem “dono”. Sempre com o coração ao pé da boca, era apaixonada e exuberante. Estava claramente fora do seu lugar e à frente do seu tempo, pensava pela sua cabeça e tinha sede de mundo.
Um dia, em 1977, quando se passeava pelas ruas do Maputo, de regresso a casa, Alima foi detida pelas autoridades. Como em tantos outros casos, o motivo da detenção era bastante prosaico: Alima “dava demasiado nas vistas”, “usava anéis” e “unhas de esmalte”. A acusação estava feita e não admitia defesa, nem recurso. Ponto-final-parágrafo.
Embora sabendo que esses “excessos” eram expressamente proibidos, Alima pôs-se a jeito e, como consequência do seu atrevimento, acabou por ser enviada para o “centro de reeducação” de Lichinga, onde ficou três anos, privada de qualquer contacto com o exterior. À semelhança de tantas outras mulheres, foi sujeita a trabalhos forçados e a sevícias enquanto lá esteve, e que só por vergonha e respeito francamente não consigo aqui reproduzir. Não consta que se tenha regenerado, nem transformado numa “mulher nova”. Imagino mesmo que a experiência no centro só tenha reforçado os traços da “mulher original” que sempre fora.
Como se não bastasse, em 1981, e já em liberdade, o Governo decidiu retirar-lhe a nacionalidade moçambicana. Sem hipóteses de permanecer no seu país, Alima pegou na sua filha (nascida no campo, poucos meses depois de Alima lá chegar), saiu do país como apátrida e pediu asilo no Brasil, que lhe foi prontamente atribuído pela Polícia Federal.
No Brasil, Alima fez contas com o passado: do quase-nada, arrumou todos os seus demónios num armário e tornou-se numa empreendedora bem-sucedida. Na novilíngua cor-de-rosa das revistas de negócios, dir-se-ia ter tornado numa “mulher de sucesso”. Aos seus olhos, porém, e apesar de ter apanhado o elevador social tão bem e tão depressa, o Brasil era apenas um lugar entre dois parênteses.
E foi assim que, um dia, dezassete anos depois de ter saído de Moçambique, e já perto dos quarenta, Alima resolveu regressar à ilha. Não para ajustar contas com o país, que Alima não era pessoa dessas coisas, mas sim por causa de um ilhéu simpático, de conversa muito fácil e olhos expressivos, a sua grande paixão da juventude. Foi nessa época de torna-viagem que a conheci.
Uma pele cheia de cicatrizes
Ao longo destes vinte cinco anos de explorações africanas, aprendi que a identidade de um país é feita de muitas estórias, como as de Alima. É como um processo contínuo, um quadro inacabado, um enorme Lego em construção. No caso de Moçambique, a identidade nacional construiu-se, até ao período pós-independência, a partir de um discurso de exaltação das virtudes culturais dos moçambicanos, por oposição aos vícios morais da ocupação colonial. Na poesia de José Craveirinha e Noémia de Sousa, sempre houve muito de negritude, muito de Césaire, muito de Senghor, muito de Damas também... uma ode gloriosa aos valores culturais dos povos negros, a ponto de, nalguns casos, se tornar paradoxalmente racista, como alguns dos próprios precursores do movimento viriam a reconhecer mais tarde.
Do mesmo modo, é-me difícil partilhar a fé que Nelson Mandela tinha na filosofia ubuntu, supostamente definidora de um modo de pensar comum africano, alicerçado na máxima zulu de que “uma pessoa é uma pessoa através das outras pessoas”. De facto, como é possível defender esta suposta consciência de pertença do indivíduo à comunidade, alegadamente geradora de solidariedade incondicional e respeito pela vontade coletiva, perante um genocídio como o do Ruanda, a guerra civil do Sudão ou o tribalismo sanguinário na Somália? Ou perante o colaboracionismo de alguns povos africanos na escravidão e tráfico dos seus irmãos? Ou ainda perante a prisão de uma rapariga como Alima, votada aos trabalhos forçados e ao ostracismo na flor da idade?
A memória de um país é uma pele cheia de cicatrizes que se trata no divã do psicanalista. Não é real, carece de objetividade, e apenas pode ser representada simbolicamente. É o espelho da forma como lidamos com a história, mas não é, ela própria, a história do país.
A grande virtude dos africanos é que foram forçados a gerir os seus traumas muito mais depressa do que as nações colonizadoras. Alguns aprenderam a lidar com os seus fantasmas, outros nem por isso, outros ainda encontraram formas criativas de gerir a sua memória, exorcizando os seus medos. É por essa e outras razões que considero os africanos muito resilientes.
Os factos e o preconceito
Testemunho essa resiliência, quase todos os dias, num grupo Whatsapp de que faço parte, juntamente com outras 40 pessoas, provindas dos quinze Estados-membros da CEDEAO. São todos diretores e ex-comissários desta organização regional e todos meus ex-alunos. Eu sou o único branco — embora eles, carinhosa e sabiamente, me chamem de berbere. Tenho o raro privilégio de poder ler as longas conversas e diatribes entre eles, a forma como se referem a nós, os brancos, sem filtros nem salamaleques. Mas sobretudo a forma como discutem apaixonadamente o futuro da sua África. Às vezes também participo nas conversas, embora prefira assumir um papel de observador-participante, antropologicamente neutro.
Há pouco tempo, dei os parabéns aos muitos nigerianos presentes no fórum pela eleição de Ngozi Okonjo-Iweala para a presidência da Organização Mundial do Comércio, embora lamentando o facto de a notícia dada pela CNN — “uma mulher negra vai ser a líder da organização cimeira do comércio internacional pela primeira vez” — ter realçado a cor da pele e não a sua competência.
Muazu Umaru, diretor da GIABA, uma poderosa agência que há anos se dedica a combater a lavagem de dinheiro na região, replicou-me de imediato: “Factos são factos: primeira mulher, primeira africana, primeira negra... o problema não são os factos, mas o preconceito”. A sua única preocupação residia nas expetativas geradas em torno da sua eleição, sendo fundamental que ela exceda as expetativas, para calar de vez a miopia generalizada.
Muazu representa a África nova que tenho tido o prazer de conhecer: a África que segura no destino com as suas próprias mãos, que assume orgulhosamente as suas conquistas, que responsabiliza os seus líderes pelo destino das suas nações, que não culpabiliza os seus fracassos num discurso miserabilista e profundamente datado.
Testemunhei a mesma resiliência e plasticidade dos africanos, noutros moldes e com outras estórias, no Níger, na República Centro-Africana, na Eritreia, mas também em Moçambique.
Quando a estátua equestre que homenageava Mouzinho de Albuquerque (o “herói” português que capturou Gungunhana), derrubada em 1975, foi trasladada para o Fortaleza de Maputo, poucos imaginariam o deleite que ela representaria para os recém-casados, que a passaram a utilizar como plano de fundo para as suas fotografias de casamento.
Já a estátua que representava Salazar, derrubada em 1974 e que até então se encontrava no centro do Maputo, foi recolocada nas traseiras da Biblioteca Nacional de Moçambique. O velho ditador foi colocado de frente para a parede, como que estando de castigo, a forma encontrada para ilustrar, com suprema ironia, o sentimento generalizado dos moçambicanos sobre o seu passado colonial. Como quem pega um touro de cernelha, não eliminaram a estátua, nem a vandalizaram, apenas mudaram de perspetiva.
No caso de Vasco da Gama, o navegador foi recolocado na mesmíssima posição em que se encontrava ao tempo colonial, virado a poente, apreciando o vai vem silencioso das dhows ao largo do canal de Moçambique. Talvez por muitos reconhecerem que o artista esculpiu a estátua de Vasco da Gama com costas muito largas, mas não tanto que possam ser-lhe assacadas todas as culpas da história desse lugar complexo, onde vítimas e algozes não escolheram religião, nem raça, nem género, nem época.
Joaquim não chegou a ver o meu amigo Vasco imortalizado por mais quinhentos anos. Faleceu prematuramente, vítima de cólera, no hospital central da Ilha, que não encontrou meios para o salvar. Quando me deram a notícia, encontrava-me a caminho de Évora, e tive de parar o carro. Chorei a bom chorar. Destilei as emoções agarradas à pele desse tempo feliz na sua companhia alegre. Sem o saber, dei-me conta que lhe erigira uma enorme estátua de sal no meu coração. Continuo a rever a sua graça por essa África fora, celebrando a sua memória.
Na verdade, mais de vinte anos depois da minha aventura no Índico, continuo a acreditar que é para os Joaquins da OIKOS que devemos todos trabalhar. Nós e os Joaquins Chissanos. Cientes das nossas responsabilidades partilhadas, mas sem complexos, nem memórias retorcidas.