Sionil José em Cidades do Sol-Em Busca de Utopias nas Grandes Metrópoles da Ásia, de Paulo Moura

Nesta viagem por Bangalore, Jacarta, Manila, Seul, Saigão, Hong Kong, Shenzen, etc, o escritor e repórter freelance Paulo Moura visitou os bairros da nova classe média e entrevistou sociólogos, filósofos, artistas, escritores, futurólogos, gurus da internet, com um propósito: conhecer as novas utopias da Ásia (ou ausência delas), que poderão vir a contaminar o mundo. No capítulo “Manila: O livro que Sionil José não escreveu”, o ex-jornalista do PÚBLICO conversa com este escritor filipino, eterno candidato ao Nobel. Nas livrarias a 4 de Maio, numa edição da Objectiva.

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O escritor filipino Francisco Sionil José na sua livraria — a Solidaridad, em Ermita Paulo Moura

Eu andava à procura da nova classe média asiática, e dos seus sonhos. Em Manila, visitei Fort Bonifácio, que é uma espécie de utopia filipina, e outros bairros ricos, mas quis também, conhecer a zona mais pobre da cidade, onde os novos estilos de vida ainda não chegaram, nem sob a forma de miragem: Tondo, provavelmente a maior favela do mundo, com os seus 3 milhões de habitantes. Mas não podia imaginar que iria conhecê-la pela mão do mais importante escritor das Filipinas e de todo o Sudeste Asiático.

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Eu andava à procura da nova classe média asiática, e dos seus sonhos. Em Manila, visitei Fort Bonifácio, que é uma espécie de utopia filipina, e outros bairros ricos, mas quis também, conhecer a zona mais pobre da cidade, onde os novos estilos de vida ainda não chegaram, nem sob a forma de miragem: Tondo, provavelmente a maior favela do mundo, com os seus 3 milhões de habitantes. Mas não podia imaginar que iria conhecê-la pela mão do mais importante escritor das Filipinas e de todo o Sudeste Asiático.

Francisco Sionil José tem 95 anos, mais de vinte romances, dez colecções de contos e outras tantas de ensaios, escritos em inglês e traduzidos em vinte e oito idiomas.

Os seus temas são as classes sociais, as injustiças, o colonialismo, a guerra, a discriminação da mulher, os dilemas morais da Humanidade. Nasceu numa família pobre de Rosales, Pangasinan, e foi influenciado, desde criança, pelos livros de José Rizal, que leu na biblioteca da escola primária, juntamente com as obras de Faulkner e Steinbeck.

Dono de uma livraria em Manila, é considerado uma referência cultural em todo o país. Uma lenda viva. É, também, um dos eternos nomeados para o Nobel da Literatura. Não havia ninguém que eu mais quisesse conhecer, nas Filipinas, do que Sionil José.

Quatro dos seus romances mais famosos constituem uma saga sobre a História filipina, desde o domínio espanhol até à revolução independentista. O primeiro desses romances, Po-on, está traduzido em português pela editorial Caminho (1990) e relata a história de um jovem que fugiu da sua aldeia para escapar à opressão espanhola, enquanto se descobre a si próprio e ao mundo. O último romance da saga, Mass, é passado em Tondo.

Sionil recebeu-me no escritório da sua livraria — a Solidaridad, em Ermita, perto de Intramuros, o bairro histórico e centro da cidade durante o período espanhol — de camisa às palmeiras e boné branco, junto à secretária onde escreve.

A Solidaridad fica no rés-do-chão do prédio que pertence à família, e é aí que Sionil vive com a mulher, Tessie, e os filhos que trabalham com ele. É, há 55 anos, um lugar mítico nos círculos literários e tem por hábito organizar conferências e tertúlias com a presença de escritores e artistas, filipinos e internacionais. Entre os escritores que já ali estiveram para o visitar, Sionil recorda, assim de repente, Vargas Llosa, Günter Grass, Norman Mailer.

Mas o critério não é muito selectivo, porque ele quis de imediato organizar uma conferência comigo, e só desistiu porque lhe disse que abandonaria o país dentro de poucos dias.

Não esperava alguém com aquela agilidade física e mental, com aquele sentido de humor, aquela curiosidade quase infantil e aquela vontade de conversar. Desde o princípio, a cada pergunta que eu lhe fazia, ele sentia-se no direito de ripostar logo com outra, sobre mim.

Antes que eu soubesse a que obras Sionil se dedicava no momento, já ele me tinha feito descrever todos os meus projectos, presentes e futuros. Interessou-se particularmente por um livro de ficção que eu andava a planear.

«É um romance histórico?», perguntou, depois de me ter feito discorrer sobre a ideia (mais até do que eu ousava desvendar a mim próprio). «Se é um romance histórico, vou dar-lhe um conselho que ouvi de um escritor australiano, que o tinha ouvido do escritor britânico Robert Graves: imagino que tenha de fazer muita pesquisa. Pois escreva o romance primeiro, faça a pesquisa depois.»

Tentei explicar-lhe ao que vinha, falei-lhe da nova classe média, mas ele pôs logo as coisas no seu lugar: «Sim, há esse fenómeno da nova classe média, mas os pobres são muito mais numerosos. E o número continua a crescer. Esse é que é o fenómeno mais importante.»

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O escritor e repórter "freelance" Paulo Moura Nuno Ferreira Santos

Lembrou que já conhecera quatro gerações de filipinos, que já vivera no campo e na cidade. «Quando eu nasci, os pobres nas aldeias deste país comiam duas vezes por dia: de manhã e às 4 da tarde. Hoje, fazem apenas uma refeição, tanto no campo como na cidade. Chamam-lhe altanghap, mistura de almusal, tanghalian e hapunan (pequeno-almoço, almoço e jantar). Há dez anos, não dormia ninguém à porta da livraria, hoje há duas ou três pessoas que vivem ali. A cidade tem muitos arranha-céus e centros comerciais cheios de produtos, mas está rodeada de bairros de lata. Onde está hospedado? Já viu algum bairro de lata de Manila?»

Respondi que não e ele chamou a filha, que trabalhava na sala ao lado.

“Vamos a Tondo!”

“Agora?”

“Sim, diz ao teu irmão que traga o carro.”
O filho mais velho de Sionil demorou umas horas a chegar, porque se encontrava do outro lado da cidade. Nós fomos conversando. Com algum atrito, ao princípio. Eu queria saber sobre a classe média, ele preferia falar da Revolução.

A nova classe média não é patriótica e carece de sentido de identidade, disse Sionil. «Na sua maioria, os filipinos não conseguem transcender-se a si próprios. Quando muito, transcendem-se na sua família ou no seu clã. Mas raramente na nação. Os únicos factores que poderiam unir-nos seriam a História e a Cultura. Porque entre os filipinos, ao contrário do que acontece nos povos vizinhos, não existe o culto dos antepassados. Celebramos os mortos, mas não queremos saber de genealogias. Isto acontece porque as duas grandes religiões do Oriente, o budismo e o hinduísmo, nunca chegaram aqui. Fomos totalmente ocidentalizados. Estas pessoas, mesmo sem cultura, são pessoas ocidentalizadas.»

Daí o papel dos artistas e dos escritores ser tão importante na criação de um sentimento de identidade, explicou Sionil. Mas eles próprios sentem-se à deriva. Ele, autor herdeiro de Rizal e da mais profunda tradição filipina, bebeu toda a inspiração nos grandes autores ocidentais (como o próprio Rizal). Há sempre algo de colonialista no mais profundo sentimento nacional.

«Eu escrevo em inglês, a cultura espanhola está nas minhas raízes, mas eu fiz dessas heranças coisas minhas. Tal como este país usou tudo aquilo que lhe deram, transformando-o numa cultura própria. Eu filipinizei o meu inglês, tal como os Estados Unidos americanizaram o seu inglês de Inglaterra.»

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O escritor filipino Sionil Paulo Moura

Ou seja, no mundo saído do colonialismo, a identidade não se faz apenas de oposição ao outro, mas também de adopção genuína do que é diferente e até do que nos foi imposto. E, se isso é verdade, a identidade continua a alimentar-se daquelas mesmas fontes que nos dominaram e de que nos emancipámos. E, se elas murcharem, as sociedades que nasceram à sua sombra definham também. Foi isto que entendi da amargura de Sionil.

«Encontro pouco para admirar na literatura dos países desenvolvidos», lamentou. «Os autores que apreciava, Faulkner, Steinbeck, Fitzgerald, Hemingway, estão todos mortos. Nos Estados Unidos, como em França ou na Inglaterra. Escritores do Terceiro Mundo, como eu, andam à procura de alguém que os possa inspirar.»

Objectei que talvez muitos autores no Ocidente andassem à procura de inspiração na Ásia, mas Sionil apenas abanava a cabeça, e continuava. «Os autores que eu admirava escreviam sobre a Grande Depressão, sobre a Segunda Guerra Mundial ou mesmo sobre a profunda melancolia das sociedades modernas. Não encontro nada disso nos escritores contemporâneos. Já não há realidades épicas que os comovam? Não entendo. Talvez o conforto da sociedade actual tenha eliminado todos os desafios. Mas é preciso saber procurá-los. Há tantos. O desafio das alterações climáticas, da robótica, da inteligência artificial. Os desafios de um escritor não deveriam ser apenas os da razão, mas também os do coração, das emoções. Eu, se vivesse nos Estados Unidos, encontraria tantos motivos de inspiração na realidade de hoje! Onde estão os filósofos contemporâneos? Onde estão os Sócrates do nosso tempo?»

Na Ásia, os artistas e escritores estão enfraquecidos, deixados sem referências, perdidos. As novas classes médias não os conhecem e, por isso, não têm onde alicerçar uma identidade. Não valorizam o nacionalismo, disse Sionil, com pena.

«As pessoas estão alienadas da sua terra-natal. O nacionalismo é malvisto, porque o associam a Hitler. Nas minhas conferências, as pessoas perguntam-me pelo significado do nacionalismo. E eu respondo: é o amor pelo país. E qual é o significado do amor? Para mim, a resposta é simples: amor é sacrifício. Quem ama alguém está disposto a sacrificar-se por esse alguém. Mas se perguntar às pessoas, mesmo às que se dizem nacionalistas, o que realmente sacrificaram por este país, descobrirá que não sacrificaram nada.»

Eu perguntei se a ideia de morrer pela pátria não seria perigosa para a própria, ao que Sionil respondeu: «Se não querem morrer, pelo menos que vivam pelo seu país. O problema está aí. As pessoas não amam o suficiente esta terra.» Daí terem elegido um líder ignorante e autoritário como Duterte, na pátria de José Rizal.

Sugeri que talvez o problema fosse global, e Sionil disse logo:

“Sim, mas isto são as Filipinas. A América pode dar-se ao luxo de ter um presidente como Trump. Nós não podemos dar-nos ao luxo de ter um Duterte. Porque na América as instituições funcionam e sobrevivem. Aqui, todas as instituições foram destruídas. “

“De onde se conclui que, ao contrário do que se pensa, os países pobres precisam mais da democracia do que os ricos”, acrescentei.

“De certa forma. Mas a verdade é que o Governo das minorias sempre foi melhor para o povo. É por isso que eu acredito na revolução.”

“Mas revolução para construir o quê? Que utopia?”, perguntei.

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Manila Paulo Moura

“Uma sociedade justa. Antes de mais: três refeições por dia. Depois: educação para as crianças. Um bom sistema de saúde.”

“Mas quando a classe média tiver essas coisas básicas, sonhará com quê?”

“Justiça, Paulo, justiça. O sonho de ter justiça para todos, mesmo quando eu e os meus não temos problemas.”

“A classe média é capaz desse tipo de sonho altruísta?”

“Não. Há dias, vieram visitar-me uns académicos chineses e estivemos a falar de Mao e da Revolução Cultural. Já não pensava nisso há algum tempo. Nunca gostei do comunismo, mas admirava Mao. Porque ele foi capaz de unir aquele país imenso. E, com a Revolução Cultural, quis destruir tudo para construir uma nova sociedade.”

“É isso que deve ser feito? Rejeitar o passado? Pol Pot tentou, no Camboja.”

“Mas o problema de Pol Pot é que teve de matar muita gente.”

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Paulo Moura

“Na China morreram milhões”, lembrei, interrogando-me se, afinal, Sionil não seria um homem perdido algures no passado.

“O que me agrada é a ideia de uma revolução perpétua.”

“Mas Trotski…”
“Não é apenas Trotski. É Proudhon, é Fourier, é Kropotkin, são os anarquistas. Construir uma sociedade igualitária, sem classes.”

“Depois de tudo o que aconteceu na História, não temos já provas de que é impossível?”

“Sim, mas ainda é um sonho. Criar o Céu na Terra.”
“É preciso, antes de mais, acreditar na espécie humana.”

“Precisamente. O que eu digo é: construir a sociedade perfeita, para o Homem imperfeito.”

“Eis uma utopia para o nosso tempo. Muito diferente da dos comunistas, que queriam construir o Homem novo. Talvez tivesse sido esse o seu erro. E talvez possamos admitir que o Homem não é perfeito, mas que pode construir uma sociedade perfeita”, disse eu, entusiasmado por estar finalmente a chegar a alguma conclusão.

“Sempre trabalhei no pressuposto de que ninguém é completamente bom nem completamente mau. São assim as personagens dos meus livros.”

“Mas acredita que, no fundo, o ser humano é bom?”

“Acredito que a bondade no Homem vai prevalecer sobre o Mal que também existe nele.”

“Se o Mal existe em nós, significa que não podemos julgar os outros?”

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Tondo, Manila REUTERS/Romeo Ranoco

“Temos de ser honestos connosco. Porque nunca sabemos o que os outros pensam e sentem. Mas, se podemos olhar os outros sem pestanejar, nada nos impede de os julgar.”

“Temos de compreender o nosso inimigo, mesmo quando somos obrigados a lutar contra ele?”

“Sim, temos sempre de o compreender e temos sempre de lutar.”

De seguida, Sionil José falou-me dos seus livros e da complexidade das suas personagens. Perguntei-lhe se estava a escrever algum.

“O meu médico disse-me: Sionil, podes ter bom aspecto, mas os teus órgãos são antiguidades.”

“O seu cérebro parece-me em perfeitas condições.”
“Sim, ainda funciona.”
“O que está a escrever?”
“Tenho um romance abortado. Perdi o interesse, não sei como o terminar.”

“Qual é o tema?”

“Inteligência artificial.”

Sionil disse-me que o livro se intitula Esperança (assim, em castelhano) e que se passa no futuro. É uma visão espantosa e, sim, uma utopia delirante, a anos-luz do imaginário de Hollywood. Sionil não tencionava terminar nem publicar o livro. Mas contou-me toda a história, capítulo a capítulo.

Disse que se inspirou num filme americano de ficção científica, O Planeta Proibido, de 1956, protagonizado por Walter Pidgeon. «É sobre o Mal que existe no Homem. Algures no futuro, um grupo de exploradores aterra num planeta distante. Morrem todos, excepto um homem e a sua filha. Este sobrevivente entra em contacto com uma civilização superior e ganha a capacidade de criar um ser humano. Há, então, uma criatura que se torna um perigo e que vem a descobrir-se ser a materialização do Mal que o Homem tinha dentro de si e que, agora, nascia para a vida.»

Revelei a Sionil que, nas reportagens de guerra a que me tenho dedicado nos últimos 30 anos, o que faço para tentar compreender o horror que vou encontrando é nada mais do que procurar o Mal que existe dentro de mim. E perguntei-lhe se tinha visto Blade Runner.

“Falaram-me muito desse filme, quero vê-lo.”

Pedi então que me contasse o enredo do seu livro, e o velho escritor, após um longo silêncio, embarcou numa espécie de transe narrativo, como se estivesse a ditar-me o livro naquele momento.

“O protagonista é um filipino já velho, na casa dos 80, que se tornou famoso por ter estudado Rizal... Quando a sua secretária pessoal morre, decide substituí-la por um robô com inteligência artificial, para o qual foram transportadas todas as características da antiga secretária. O homem perde a sua sexualidade, depois a sua integridade e, por fim, a memória. A revolução filipina quase foi bem-sucedida, mas o país foi queimado, e o homem vai para as montanhas, à procura da irmã... Abandonou a cidade, reformou-se e quer viver no alto das montanhas, encontrar a irmã que está a morrer…”

A mulher-robô tem capacidade de aprendizagem e auto-aperfeiçoamento, e quando atinge um nível evolutivo superior ao dos humanos, ganha vida própria e começa a pensar sobre o mundo, a relacionar as coisas e a tirar as suas conclusões. Em consequência deste processo, que faz dela mais humana do que os humanos, torna-se uma revolucionária, lutando contra os poderes opressores, por um mundo mais justo.

«Afinal, o romance está acabado», disse Sionil com um ar absolutamente surpreendido quando terminou o relato. «Só falta juntar as várias peças.»

Smoky Mountain, Tondo

«Todos os romances foram escritos assim, em partes, que depois junto numa sequência ininterrupta. Todos menos Mass. Esse, escrevi-o num mês, em Paris, de uma assentada», confessou Sionil quando já íamos, de carro, com o irmão e a irmã, a caminho de Tondo.

«Mass passa-se aqui, durante o período de reivindicação e revolta que levou à instauração da Lei Marcial por Marcos, em 1972.» Sionil ia apontando lugares e contando histórias, enquanto o carro seguia muito devagar pela avenida junto ao porto.

Tondo é todo um distrito da zona urbana de Manila (o maior e mais populoso dos 16 distritos da capital) e inclui vários bairros de lata, mas também zonas de classe média e até bairros ricos. Não obstante, constitui, no seu conjunto, uma das zonas mais pobres do país. E assemelha-se, sob quase todos os pontos de vista, a uma gigantesca favela. É também a zona do mundo com maior densidade populacional, com 75 mil habitantes por quilómetro quadrado.

Após a conquista espanhola, em 1571, Tondo tornou-se, segundo a nova divisão administrativa, uma vasta província, abrangendo parte do Norte da ilha de Luzon, com a cidade de Manila no centro. Só em 1800 a província foi rebaptizada como Província de Manila.

Em 1896, Tondo foi a região que primeiro se insurgiu contra os espanhóis. Os movimentos revolucionários nasceram e cresceram ali, naquelas ruas em torno do porto e do rio Pasig. Andres Bonifácio, o líder revolucionário que hoje dá nome ao bairro mais rico de Manila, nasceu em Tondo.

A vitória contra os espanhóis foi conseguida com a ajuda dos Estados Unidos, então em litígio com a Espanha por causa do controlo de Cuba. Apenas um dia após a declaração de independência das Filipinas, os Estados Unidos ocuparam o novo país e transformaram-no numa colónia sua.

Foi já em 1911, sob o domínio americano, que a província de Tondo foi extinta para se tornar um distrito de Manila, um gueto para os pobres. Bairros de lata nasceram ao longo do rio, assim como os depósitos do lixo de toda a cidade. Lixo que, entretanto, se transformaria na principal fonte de rendimento dos pobres.

O primeiro lugar que Sionil me levou a ver foi a Smoky Mountain, uma zona agora repleta de prédios de habitação social, outrora a localização da maior montanha de lixo do mundo. Mais de dois milhões de toneladas de lixo, do qual dependia directamente a sobrevivência de 30 mil pessoas.

O apodrecimento dos detritos e a existência de matérias inflamáveis deram origem a gigantescos incêndios que mataram muitos habitantes da zona. Os fogos nunca chegavam, aliás, a apagar-se completamente, razão pela qual o lugar era conhecido como «montanha fumegante».

A Smoky Mountain foi oficialmente desactivada em 1996, após 40 anos de tragédias. Os apanhadores de lixo, que vasculhavam os dejectos à procura de bens que pudessem vender, mudaram-se então para outro depósito, em Payatas. A nova montanha foi crescendo até que, em Julho de 2000, um colossal bloco de dejectos se desmoronou sobre as barracas circundantes, incendiando-se a seguir e matando pelo menos 800 pessoas, submersas numa montanha de lixo a arder.

Entrámos nos becos emaranhados de Tondo, nos imundos mercados, na confusa artéria junto ao porto da Baía do Mar das Filipinas, nas margens do rio Pasig, nas vielas estreitas e escuras onde as barracas se encaixam umas nas outras, para os lados e para cima, como pilhas de caixotes amarrotados.

Vejo um jeepney (os pequenos autocarros coloridos adaptados dos jipes militares deixados pelos americanos após a Segunda Guerra Mundial) chegar à paragem da imunda praceta de Tondo. Alguns passageiros saem, ainda atordoados do aperto. Alguém está a chegar a casa depois de um dia de trabalho noutro bairro. Alguém cuja casa é ali, entre tábuas, latas ferrugentas, lonas esfarrapadas, pedaços a cair, bidões, emaranhados de fios eléctricos e roupas, tudo misturado com o lixo, que é a própria textura, a marca, o estilo, o sustento do bairro.

As pessoas vendem o que encontram de forma ambulante, ali ou nos bairros mais ricos, ou a revendedores que têm uma junk shop aberta nas ruas de Tondo. Havia junk shops por todo o lado, no  rés-do-chão das barracas de vários andares, debaixo de panos ou chapas, cravadas nas encostas forradas de casebres e lixo. E homens e mulheres carregando caixas de lixo à cabeça, camiões, carrinhas, motos, bicicletas e triciclos carregados de lixo, crianças descalças com sacos de lixo às costas. É o ciclo produtivo do lixo, a hierarquia social, a cadeia alimentar do lixo.

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Numa das maiores lixeiras, conhecida como Happyland, muita gente se dedica a apanhar sobras de frango que, depois de dissolvidas em água a ferver, dão origem a uma papa chamada pagpag, que é depois vendida e constitui a base proteica na mesa de muitas famílias pobres.

Na grande feira da sobrevivência urbana, nada se desperdiça. Tudo tem o seu preço, tudo tem o seu valor.

O protagonista de Mass, que é o último livro da saga sobre a história filipina, é José Samson, filho ilegítimo de António Samson, protagonista de Os Fingidores, o penúltimo livro da saga, e bisneto de Istak Samson, o protagonista de Po-On, o primeiro livro da saga. José torna-se traficante de droga em Tondo e, mais tarde, adere a um grupo revolucionário chamado «A Irmandade», numa intriga que envolve intelectuais, artistas, estudantes activistas, viciados em drogas, traficantes e feministas.

No final do dia, Sionil, Tessie e os filhos levaram-me a comer ensaymada, um bolo de banha tradicional de Manila, e halo-halo, o típico gelado com fruta, feijões e arroz, no seu café predilecto, onde têm tratamento principesco, em Intramuros.

Sionil estava radiante, parecia ter rejuvenescido. Tondo, e não os bairros da classe média, é o seu mundo. Sente que é ali que a revolução ainda pode nascer. A sua, a revolução permanente.