A realidade dura dos factos: uma educação com livros e pensamento (2)
Uma disciplina de História das Mentalidades – eis o que julgo ser imperioso nesta luta contra a amnésia e a brutalização dos mais novos.
Hoje, em Portugal, as políticas de educação (este “hoje” tem, pelo menos, quinze anos de propaganda ideológica) pretendem fazer-nos crer que a “transição digital” é a panaceia para todos os males. Do desemprego à produção, da competitividade ao desenvolvimento de proficiências diversas, as tecnologias resolverão os problemas estruturais do país. Esquecem os paladinos dA tecnocracia o óbvio: o tecido empresarial português é constituído por cafés, restaurantes, negócios familiares – os negócios próprios dum país onde a educação foi sempre pensada de modo irrealista. País sem leitores, sem elites que conheçam o húmus donde vem o português comum, este é um país suburbano e pobre, votado à desertificação, ao desemprego jovem, refém de subsídios e envelhecido. Esta pandemia desvitalizou-nos, vemo-nos confrontados com problemas estruturais que só poderão ser resolvidos se houver ilustração.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Hoje, em Portugal, as políticas de educação (este “hoje” tem, pelo menos, quinze anos de propaganda ideológica) pretendem fazer-nos crer que a “transição digital” é a panaceia para todos os males. Do desemprego à produção, da competitividade ao desenvolvimento de proficiências diversas, as tecnologias resolverão os problemas estruturais do país. Esquecem os paladinos dA tecnocracia o óbvio: o tecido empresarial português é constituído por cafés, restaurantes, negócios familiares – os negócios próprios dum país onde a educação foi sempre pensada de modo irrealista. País sem leitores, sem elites que conheçam o húmus donde vem o português comum, este é um país suburbano e pobre, votado à desertificação, ao desemprego jovem, refém de subsídios e envelhecido. Esta pandemia desvitalizou-nos, vemo-nos confrontados com problemas estruturais que só poderão ser resolvidos se houver ilustração.
Creio profundamente, ao cabo de vinte anos de ensino, que a educação dos mais jovens só terá sentido se se fomentarem ideias novas – e isso não passa pela formatação computacional, mas por uma alteração da visão de mundo capaz de questionar atavismos e seguidismos novos que o digital acaba por promover, ainda que sob a capa da inovação. Os problemas portugueses não se resolvem com a opressão do sistema tecnocientífico da modernidade cega; os problemas portugueses resolver-se-ão com uma educação centrada no ensinar a pensar e a sentir.
Os nossos alunos estão amestrados no cálculo mental – mas, desvitalizados, a sua vida escolar e universitária mais não é do que uma corrida contra tudo e contra todos, querendo-se chegar a uma meta, seja ela qual for, mesmo se para isso se sacrificaram a imaginação, a sensibilidade e a inteligência. A escola, desde o pré-primário, deveria existir para potenciar aquilo que somos: pessoas de carne e osso e, já agora, algum espírito. Mas a escola imita a sociedade que a rodeia: instrumentalizou-se, quis tornar-se empresarial, comprometeu-se o ambiente salutar em muitas frentes, desde logo com a ilógica decisão dos agrupamentos de escola, mais uma vez centralizando decisões, amontoando também alunos de ciclos diversos, quantas vezes em estabelecimentos sem preparação para albergar a massa estudantil...
Em face da matriz digital, não será, mais do que nunca, necessário um novo currículo escolar com disciplinas centradas no estudo da literatura, da sua linguagem e no pensamento? Não se justifica que as disciplinas de História, de Arte e de Música façam parte de todas as áreas? Uma disciplina de História das Mentalidades – eis o que julgo ser imperioso nesta luta contra a amnésia e a brutalização dos mais novos. Não é esta pandemia a oportunidade de ouro para que, depois dos erros e das fantasias do homo tecnologicus, suceda o realismo que vem da tradição, da memória e da historicidade?
Como escreveu Viriato Soromenho Marques: “Que a humanidade se encontre encerrada e paralisada devido a mais um invisível coronavírus, é não só o destronar do optimismo de Byung-Chul Han em relação ao nosso poderio médico face aos vírus, é também um desabar das fantasias acerca dum futuro digital para a condição humana”, pois o que a covid-19 põe a nu é isto: “A humanidade jamais fará o upload da sua condição animal para o mundo dos algoritmos, que [é] uma espécie de neoplatonismo para os programadores digitais. [...] Somos seres de carne e osso, frágeis, [...] com uma cultura científica primitiva e grotesca, mas engalanada de uma arrogância infinita” (JL/ Visão, 7/5/2020).
Michel Desmurget diz-nos que os “nativos digitais” são os primeiros filhos a ter QI inferior aos dos pais, tendência documentada na Finlândia, na Holanda, em França, na Dinamarca... Horas infinitas frente aos ecrãs, ausência de cultura geral, sem conhecimento, ideias e ideais, eis o que criámos – os futuros funcionários de uma sociedade não só do cansaço, mas feita de homens-massa, adoradores de chefes, cultores da banalidade, funcionários que funcionam. Só isso.