O primeiro emprego

Quando o despertador tocava de manhã para as aulas, custava-lhe muito levantar-se, tinha sono. Nem sempre conseguia tomar banho às 2h da madrugada, quando chegava do turno, ou acordar mais cedo para o fazer. Por isso, muitas vezes entrou na aula de português ou de filosofia às 8h30 a cheirar a fritos. Nunca ninguém se queixou.

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Miguel Andrade/Unsplash

Tinha 16 anos. Os pais proporcionavam-lhe uma vida remediada. O salário do pai, como mecânico contratado, tinha de dar para tudo; por isso não se opuseram quando lhes comunicou que se ia candidatar ao trabalho nos hambúrgueres no turno da noite. Estava a estudar, andava no 11.° ano e era boa aluna. Queria ser actriz e sabia que os dentes que a natureza e os pais lhe deram a impediriam de triunfar na profissão. Sabia que tinha talento, ambição e capacidade de trabalho; não ia permitir que os dentes, sendo fracos, tivessem a capacidade metafórica de lhe cortarem as pernas.

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Tinha 16 anos. Os pais proporcionavam-lhe uma vida remediada. O salário do pai, como mecânico contratado, tinha de dar para tudo; por isso não se opuseram quando lhes comunicou que se ia candidatar ao trabalho nos hambúrgueres no turno da noite. Estava a estudar, andava no 11.° ano e era boa aluna. Queria ser actriz e sabia que os dentes que a natureza e os pais lhe deram a impediriam de triunfar na profissão. Sabia que tinha talento, ambição e capacidade de trabalho; não ia permitir que os dentes, sendo fracos, tivessem a capacidade metafórica de lhe cortarem as pernas.

Lá foi, então, à entrevista para o seu primeiro emprego. Encarou a situação como um casting e mostrou-se a candidata mais empenhada que o patrão dos hambúrgueres iria encontrar. Contou-lhe o verdadeiro motivo da sua candidatura ao emprego. O patrão riu-se, mostrando uns dentes brancos, alinhados, perfeitos. Iguais aos que sempre sonhou. Foi contratada. A farda azul-escura com a camisa às riscas e uma pala a segurar a franja eram ridículas. Mas o pior era o cheiro que ficava na roupa depois de um turno. Um odor nauseabundo a gordura e a plástico. Não há cheiro que se compare. Colava-se às roupas, à pele e ao cabelo.

Apesar de tudo, gostava de trabalhar na hamburgueria. O ambiente composto por colegas da mesma idade, com boa disposição diária, ao som dos alarmes das inúmeras fritadeiras de batatas fritas nunca lhe saiu da memória. Foi lá que aprendeu que o chão deve lavar-se com movimentos circulares, fazendo um oito. Só assim fica inteiramente coberto pelo passar da esfregona. E também que as mãos, quando se trabalha com comida, devem ser higienizadas de cinco em cinco minutos. Gostava dos dias de limpeza, de fecho, apesar de serem duros. Tinham muita gordura para limpar, principalmente o desgraçado ou a desgraçada que tivesse de fazer a copa. A tarefa de raspar cubas gigantes, com camadas de gordura, e lavá-las com um chuveiro de água quente metia nojo, tinha de fazer-se desviando os olhos pontualmente ou o estômago não aguentava o que tivesse dentro. Mas nos dias de fecho, e para quem ficasse longe da copa, também podia comer-se gelado de um grande balde, até enjoar. Os restos que tinham de ser retirados da máquina para que fosse limpa eram comidos pelos funcionários incumbidos dessa tarefa.

Nessa altura também começou a namorar com o gerente, que tinha apenas mais dois anos de idade. E a primeira vez que houve ligação foi precisamente quando estavam os dois sentados no chão a comer do grande balde de restos de gelados. Depois começou a colocar-lhe flores no cacifo, e durante o turno, quando o restaurante estava à pinha, piscava-lhe o olho discretamente entre as prateleiras que dividiam a área das caixas e a zona do grill. Não se apaixonou por ele, mas foi um namoro que durou uns meses e que foi terno, gentil, inocente.

Quando o despertador tocava de manhã para as aulas, custava-lhe muito levantar-se, tinha sono. Nem sempre conseguia tomar banho às 2h da madrugada, quando chegava do turno, ou acordar mais cedo para o fazer. Por isso, muitas vezes entrou na aula de português ou de filosofia às 8h30 a cheirar a fritos. Nunca ninguém se queixou. Apesar de tudo, continuava a ser popular na escola. Ainda mais agora que sabiam do seu esforço. Era uma espécie de heroína, que tinha o seu próprio cartão multibanco. Mas o dinheiro que ganhava era pouco, e foi gastando em livros e roupas aquilo que devia ter ido para os dentes. Não foi capaz de manter o objectivo de armazenar o suficiente para o investimento na perfeição dentária. E nem por isso deixou de querer ser actriz e de ser surpreendida ao ver escrito na porta da casa de banho do pavilhão da escola, autoria da melhor amiga, que acumulava o cargo de sua primeira e única fã: “Do McDonald’s a Hollywood! <3” Enfim, o velho e batido sonho americano dos subúrbios, neste caso da margem sul.