Contra a síndrome do silêncio? Parar de aceitar o inaceitável
Em Portugal falar na sua própria voz não é muito o hábito, uma denúncia é uma coisa muito íntima, dolorosa, há muitas mulheres que temem a exposição e a denúncia pública, com boas razões.
É mais fácil dizer que as mulheres mentem do que responsabilizar os abusadores. É mais culpabilizar e descredibilizar as vítimas do que confrontar e condenar agressores. É mais fácil o linchamento público da vítima do que não compactuar com uma sociedade que as silencia. A luta das mulheres e dos homens que respeitam as mulheres, não é por vingança que a vingança não nos merece, é por justiça.
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É mais fácil dizer que as mulheres mentem do que responsabilizar os abusadores. É mais culpabilizar e descredibilizar as vítimas do que confrontar e condenar agressores. É mais fácil o linchamento público da vítima do que não compactuar com uma sociedade que as silencia. A luta das mulheres e dos homens que respeitam as mulheres, não é por vingança que a vingança não nos merece, é por justiça.
Em 2017 a personalidade do ano para a revista Time foram “as vozes que lançaram um movimento”, as pessoas que denunciaram casos de assédio e abuso sexual. As campanhas #MeToo e Time´s Up derrubaram a ideia normalizada de que o assédio sexual, o abuso e a violação eram uma contingência do ser-se mulher. Essa mudança aconteceu pela enorme força colocada em movimento pelas mulheres ao começarem a falar. Harvey Weinstein acabaria condenado a 23 anos de prisão por crimes sexuais.
O movimento #MeToo teve a virtude de dar uma voz coletiva às mulheres. De as empoderar. Esse foi o seu grande feito. Há uma lógica de empatia, de identificação: mulheres de todo o mundo deixaram de se sentir sós.
Em Portugal falar na sua própria voz não é muito o hábito, uma denúncia é uma coisa muito íntima, dolorosa, há muitas mulheres que temem a exposição e a denúncia pública, com boas razões. Este fim-de -semana numa entrevista televisiva a atriz Sofia Arruda quebrou o silêncio. “Uma mão, um cumprimento que ficava no sítio que não era suposto. Um beijo que me deixava um bocadinho constrangida, mas às tantas tu pensas que se calhar a pessoa é assim, muito afetuosa, e ficas a sorrir timidamente e afastas-te. Mas depois disso ia passando para intervenções mais diretas, de dizer que estava bonita, que me tinha visto não sei onde (…) quando comecei a ficar mais desconfortável com a situação tive de pegar no telefone e disse que se fosse uma reunião ou um almoço de trabalho a minha agente iria comigo. Se não fosse essa intenção então não haveria qualquer almoço ou jantar. Essa pessoa disse ok e desligou o telefone. Depois, mais tarde, durante as gravações, estava na maquilhagem e a pessoa chegou, agarrou-me no braço e perguntou-me ao ouvido se era a minha última decisão. Eu disse que sim e ele respondeu-me que nunca mais ia trabalhar ali”. O que acabaria por acontecer. “Sei que fui vítima, mas sentia-me culpada porque pensava se em algum momento tinha dado a entender alguma coisa. Mas tinha a certeza que não tinha dado, que nunca tinha permitido qualquer tipo de aproximação que não fosse profissional dentro do local de trabalho”.
O que seguiu nas redes sociais foi o catálogo do previsível: “Porque só fala agora?”, “porque não diz o nome?”, “porque não foi à PSP?”, “isso é um não-assunto”. E estes são os comentários mais “benévolos”. É mais fácil dizer que as mulheres mentem do que responsabilizar os abusadores. É mais fácil culpabilizar e descredibilizar as vítimas do que confrontar e condenar agressores. É mais fácil o linchamento público da vítima do que não compactuar com uma sociedade que as silencia. A luta das mulheres e dos homens que respeitam as mulheres, não é por vingança que a vingança não nos merece, é por justiça.
Quando uma mulher conta uma experiência como esta a primeira coisa que devemos fazer é não duvidar dela, “essa dúvida não deve ser alimentada pelo facto de a pessoa ter demorado anos a falar. Uma experiência de assédio não prescreve. Vive no corpo da vítima até à sua morte. Nem todas as pessoas conseguem reconhecer imediatamente o assédio. Nem todas as pessoas têm uma estrutura pessoal, mental, emocional, profissional para o denunciarem. Nem todas as pessoas conseguirão, alguma vez, denunciá-lo”, escreveu na sua página de Facebook a atriz Sara Barros Leitão.
O testemunho de Sofia Arruda é de uma enorme coragem, como antes o fora o de Catarina Furtado, e parece ter espoletado o tão necessário #MeToo português. Mulheres mais ou menos anónimas partilharam nas redes sociais as suas histórias de assédio sexual e muitos homens reconheceram que o assédio não é uma bagatela, é um abuso de poder, uma consequência de uma sociedade laboral assimétrica, resultado da desigualdade de oportunidades, e de um mundo dominado por homens e determinado pelas decisões de homens.
Importa não se cair na tentação colectiva de pedir que a pessoa diga o nome do agressor. “Primeiro: não precisa. A vítima só deve contar até onde estiver preparada para contar. Não é o facto de haver um nome que irá alterar o que aconteceu. Segundo: apesar de o nome não ser público, pelo menos por enquanto, não significa que não se saiba quem é. Como dizer isto de forma clara? Toda a gente no nosso meio sabe quem é. De colegas a equipas, de canais a comunicação social”, continua atriz Sara Barros Leitão.
O #MeToo não é uma “moda” como o tentam descartar muitos homens aterrorizados, é um movimento contra a impunidade que protege os agressores e deita fora as vítimas. Já há uma censura moral contra os agressores – nós sabemos quem eles são - , eles sabem que esses comportamentos são inaceitáveis, falta agora criar-se “redes de apoio e solidariedade, respeitando o tempo das vítimas, respeitando as suas histórias, e, sobretudo, resistindo à sórdida tentação de querer narrativas mais violentas, mais trágicas, o que acaba por desvalorizar as micro-agressões, deixando, assim, centenas de vítimas a sentir-se ainda pior com o que lhes aconteceu por não encontrarem, sequer, ali espaço para a sua história”.
A sociedade tem que ser um lugar seguro para mulheres, não um lugar onde assediadores e agressores continuem a escrever artigos de jornal, a trabalhar nas televisões, a chefiar departamentos, a perseguir mulheres. Que sociedade queremos? Basta de condenação moral, queremos consequências. Obrigada Sofia.