Ancara, 6 de abril de 2021: O nascimento da comissão geopolítica?
O que se passou no palácio presidencial da Turquia foi uma oportunidade perdida pela tão sofisticada diplomacia turca e um adicional tiro no pé na imagem diplomática da UE.
Entre 2011 e 2014, fui ‘sombra’ do então presidente da Comissão Europeia, José Manuel Durão Barroso, e participei em inúmeras reuniões e cimeiras internacionais com ele como representante único da União Europeia, ou juntamente com o presidente do Conselho da altura, Herman Van Rompuy. Não fora a minha experiência durante aqueles anos, deixaria o assunto do chamado #SofaGate morrer. Na verdade, já muito foi dito, mas pouco por aqueles que passaram por situações semelhantes. A 6 de abril de 2021, em Ancara, estava muito em jogo. Ironicamente, esta visita bem aproveitada pode ser o prenúncio de uma verdadeira comissão geopolítica.
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Entre 2011 e 2014, fui ‘sombra’ do então presidente da Comissão Europeia, José Manuel Durão Barroso, e participei em inúmeras reuniões e cimeiras internacionais com ele como representante único da União Europeia, ou juntamente com o presidente do Conselho da altura, Herman Van Rompuy. Não fora a minha experiência durante aqueles anos, deixaria o assunto do chamado #SofaGate morrer. Na verdade, já muito foi dito, mas pouco por aqueles que passaram por situações semelhantes. A 6 de abril de 2021, em Ancara, estava muito em jogo. Ironicamente, esta visita bem aproveitada pode ser o prenúncio de uma verdadeira comissão geopolítica.
Curso intensivo de geopolítica
Nos últimos meses, a UE tem estado num curso intensivo de geopolítica. E a desastrosa visita de Charles Michel e Ursula von der Leyen recentemente à Turquia foi mais uma página deste manual. Mas há mais lições a tirar. Se analisarmos o episódio em que a primeira mulher presidente da Comissão Europeia é relegada para uma posição secundária por um ângulo exclusivamente de igualdade de género ou protocolar, arriscamo-nos a ignorar a questão essencial. Sem dúvida que aqueles aspetos são muito relevantes, mas a perspetiva política é ainda mais importante.
O argumento de género
Tendo em conta o contexto em que se realizou a visita à Turquia, poucas semanas depois de o Presidente Erdoğan ter retirado a Turquia da Convenção de Istambul sobre prevenção e combate à violência contra as mulheres, e o fraco desempenho daquele país no combate à violência doméstica e ao femicídio, é natural que se veja o que aconteceu em Ancara a partir deste ponto de vista. E é também fácil admitir que o incidente fosse uma manifestação de misoginia. Mas suponhamos por momentos que os papéis estavam invertidos: o presidente do Conselho uma mulher e o presidente da Comissão um homem? Ou que ambos seriam do mesmo sexo. Estaríamos a ter a mesma conversa? Talvez não. Ora, o mundo não funciona baseado em ‘ses’, pelo que recebo a irritação e a ofensa. Eu senti-a também.
O argumento do protocolo
Se lermos o Tratado de Lisboa ou nos guiarmos por ordens protocolares facilmente acedidas na Internet, a desilusão é ainda maior. Um oficial de protocolo no palácio presidencial de Ancara que olhasse para estes documentos ou tratados da UE tinha a certeza que estava a fazer a coisa certa. Além disso, tinha acabado de reunir-se com uma equipa de protocolo da UE (leia-se Conselho), confirmando que Charles Michel liderava a delegação. Mas a UE é um ator político peculiar. Mesmo que exista uma lista de precedência acordada, isso não altera as competências de cada instituição e o facto de a Comissão também ter poderes de representação externos.
Sejamos também claros: é muito difícil determinar ou explicar as regras de protocolo e refletir os equilíbrios de poder da UE quando não se é o anfitrião ou quando se está ausente. E, aqui, a equipa de Von der Leyen cometeu um erro fatal: não enviar uma equipa avançada do seu serviço de protocolo a Ancara como é prática normal. Evocar as restrições da covid-19 para justificar essa ausência é uma desculpa maltrapilha para uma Comissão que quer ser geopolítica, ainda mais num ambiente de relações tensas e regras de protocolo mal definidas.
Como diz o ditado, “protocolo é política”. Imediatamente após o incidente em Ancara, muitas fotos de três presidentes – todos homens – sentados lado a lado circularam nas redes sociais para ilustrar o faux pas protocolar e de género. O que se esquecem de referir é que esses casos acontecem frequentemente, quer em ocasiões em que a UE é anfitriã e, portanto, num contexto onde se entendem os necessários equilíbrios entre instituições, ou ocorre em situações politicamente “neutras:” reuniões à margem do G20, do G7, da Assembleia Geral das Nações Unidas ou de outros fora internacionais. Nestas situações, todos os serviços de protocolo da UE – Conselho e Comissão – estão presentes e asseguram que ambos os líderes são tratados em pé de igualdade. Mas isso é política, não protocolo, e segue uma tradição diplomática já estabelecida.
Por último, se pensarmos bem: em quantas ocasiões é que os dois presidentes da UE viajam juntos para além do calendário fixo de cimeiras internacionais, bilaterais ou multilaterais? Não muitas e talvez haja uma razão para isso...
O argumento político
Este é, de longe, o ângulo mais relevante pelo qual devemos analisar o que se passou no palácio presidencial da Turquia. Ancara teve a escolha política de colocar uma cadeira à esquerda de Erdoğan e decidiu não o fazer. Porquê? O protocolo do Conselho da UE presente deveria igualmente ter insistido nisso, enviando também a mensagem da importância da igualdade de género para a UE, mas optou por não o fazer. Porquê? Se ambos o tivessem feito, não teria havido #SofaGate. A visita foi, pois, uma oportunidade perdida pela tão sofisticada diplomacia turca e um adicional tiro no pé na imagem diplomática da UE.
Mais importante ainda, involuntária ou intencionalmente, a Turquia não vê a Comissão como um ator político ou geopolítico. Mas, na verdade, devia levá-la muito mais a sério. Afinal de contas, se olharmos atentamente para algumas das coisas que a Turquia quer da UE, sobretudo a modernização do acordo de união aduaneira, é a Comissão que pode ajudar a cumprir esse desígnio. Se Erdoğan quer que a Comissão seja apenas um braço tecnocrático da UE, vai arrepender-se: os funcionários da Comissão não terão pejo em orientar-se exclusivamente por regras e factos. E aqui a Turquia perde.
O nascimento da comissão geopolítica?
Ninguém sai bem na fotografia do #SofaGate. Ironicamente, a parte ofendida – a Comissão e a sua presidente – têm momentaneamente uma autoridade acrescida, até pelas fortes críticas ao presidente Michel, e deve usar o incidente para afirmar a sua posição e estabelecer regras claras sobre a representação externa da UE, especialmente quando ambos os líderes europeus estão presentes. Talvez a comissão geopolítica tenha nascido em Ancara a 6 de abril de 2021?
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico