Excerto de Portugal e a crise do século, o primeiro livro da economista Susana Peralta

Chega na terça-feira às livrarias Portugal e a crise do século, da economista Susana Peralta, numa edição da Editora Objectiva. Doutorada pela Universidade Católica de Lovaina, na Bélgica, a colunista do PÚBLICO e professora da Nova School of Business and Economics tem investigação publicada em temas de federalismo fiscal e economia política. Pré-publicação de O vírus cava o fosso e de um excerto de A crise desigual em Portugal.

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"Para os jovens do bairro da Jamaica e do vizinho Santa Marta, é menos suportável do que para a burguesia do teletrabalho onde me incluo." rui gaudencio

No final de março, a cantora Madonna enviou uma mensagem aos seus fãs no Twitter e no Instagram. A partir de uma luxuosa banheira rodeada de velas e pétalas de rosa, com um fundo de música de piano, dizia a diva: «É o que importa sobre a covid-19. É o grande igualizador. Não importa quão rica, engraçada ou inteligente és, onde vives, quantos anos tens, que histórias incríveis tens para contar. É o grande igualizador, e isso é o que tem de terrível e também o que tem de bom.» A mensagem de Madonna — aqui traduzida livremente por mim — suscitou críticas ferozes dos seus fãs. Não se identificavam com a luxuosa imagem do quotidiano da cantora. Sentiram pouca empatia com a mensagem, que desconsiderava o facto de muitas pessoas terem continuado a sua vida normal de trabalho e outras estarem a enfrentar angústias várias para pagar as contas no fim do mês.

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No final de março, a cantora Madonna enviou uma mensagem aos seus fãs no Twitter e no Instagram. A partir de uma luxuosa banheira rodeada de velas e pétalas de rosa, com um fundo de música de piano, dizia a diva: «É o que importa sobre a covid-19. É o grande igualizador. Não importa quão rica, engraçada ou inteligente és, onde vives, quantos anos tens, que histórias incríveis tens para contar. É o grande igualizador, e isso é o que tem de terrível e também o que tem de bom.» A mensagem de Madonna — aqui traduzida livremente por mim — suscitou críticas ferozes dos seus fãs. Não se identificavam com a luxuosa imagem do quotidiano da cantora. Sentiram pouca empatia com a mensagem, que desconsiderava o facto de muitas pessoas terem continuado a sua vida normal de trabalho e outras estarem a enfrentar angústias várias para pagar as contas no fim do mês.

A covid-19 não foi o grande igualizador; pelo contrário, cavou o fosso que já existia entre as pessoas. Ou melhor: os fossos. Os que separam ricos de pobres, mulheres de homens, minorias étnicas da maioria branca, jovens de adultos e idosos, pessoas com mais estudos das menos instruídas, pessoas com empregos estáveis das precárias.

Um dos meus livros de economia preferidos chama-se The Economics of Poverty, escrito por Martin Ravallion, um estudioso da pobreza e antigo director do departamento de investigação do Banco Mundial.

Ravallion começa logo nas primeiras páginas com a pergunta: «Porque existe pobreza?», e explica que existe uma longa tradição intelectual de culpar as mulheres e os homens pobres pela sua condição, atribuindo-lhes estereótipos como o de serem preguiçosos, irracionais, incapazes de gerir a sua vida.

Esta velha tradição intelectual de separar o mundo entre «nós» e «eles» reflete-se na organização da sociedade e da economia e, infelizmente, uma parte destes estereótipos sobreviveu até aos dias de hoje no nosso subconsciente coletivo. Raramente na história recente a separação entre os privilegiados e os destituídos foi tão crua.

A capa do livro de Ravallion é uma fotografia de uma workhouse para pobres da Inglaterra vitoriana, uma estrutura de acolhimento e trabalho típica das políticas de combate à pobreza daquele período.

A ideia de que os pobres são «diferentes» reconfortou as elites ao longo da sua história de inação para erradicar a pobreza. As workhouses da Inglaterra vitoriana eram instituições assistencialistas e moralizadoras, que alimentavam — mal e pouco — as pessoas pobres e procuravam corrigir os seus supostos maus hábitos.

Como nos explica Ravallion, encontramos nos dias de hoje uma herança deste passado sombrio nos apoios ao rendimento com componentes workfare, que é como quem diz: obrigação de trabalho em troca de transferências.

A Câmara Municipal de Lisboa concebeu um esquema de apoio de emergência aos artistas, que exigia em troca até 30 horas de trabalho. Ao ator e produtor Filipe Crawford, por exemplo, foi-lhe exigida essa contrapartida em troca de 154,69 euros de apoio mensal. A vereadora da Cultura da câmara decidiu, entretanto, revogar esta norma, mas aproveitou para insistir que isto não configura uma «prestação de serviços», antes uma «contrapartida do apoio concedido». Uma escolha de palavras que não consegue disfarçar o essencial.

No final de maio, quando a pandemia estava controlada em quase todo o país, começaram as notícias de surtos. É que o confinamento, quando nasce, não é para todos. O surto nas plataformas logísticas da Azambuja mostrou que nem toda a gente tem a possibilidade de se proteger do risco de contágio.

Desconhecemos que medidas de segurança foram implementadas nestas fábricas e armazéns. Não sabemos quantas pessoas esconderam sintomas por medo de perderem uma parte do pouco rendimento que têm. Mas sabemos que não conseguimos colectivamente proteger estes trabalhadores mal pagos e com poucos direitos laborais, que carregam sobre os ombros o que de mais essencial flui na economia, como a comida para os supermercados.

Como uma desigualdade nunca vem só, a do rendimento mistura-se, nesta história, com a étnica e a do país de origem. Muitas pessoas que trabalham nas empresas afetadas na Azambuja são imigrantes jovens que se deslocam para o trabalho de comboio, a partir de bairros periféricos da área metropolitana de Lisboa. Os hostels de Lisboa, onde também houve surtos, são espaços que concentram imigrantes, provavelmente com trabalhos precários e mal pagos, a viver em espaços sobrelotados no limite da indignidade.

Depois, veio o surto nos bairros da Jamaica e de Santa Marta, que terá tido origem numa festa no início de maio. É que isto de aguentar o confinamento depende muito da qualidade do sofá, da velocidade da Internet e da variedade do que há no frigorífico.

Para os jovens do bairro da Jamaica e do vizinho Santa Marta, é menos suportável do que para a burguesia do teletrabalho onde me incluo.

Serão estes exemplos fruto do acaso? Em Portugal não temos como quantificar estes fenómenos, mas, no Reino Unido e nos Estados Unidos, onde há informação étnica e dados disponíveis, vários estudos mostram que as minorias étnicas são mais afectadas pela covid-19. O The Lancet publicou em 2020 o artigo Evidence mounts on the disproportionate effect of covid-19 on ethnic minorities. O título é sugestivo, os números também. No Reino Unido, a taxa de letalidade entre as pessoas de ascendência africana é 3,5 vezes maior do que a dos brancos britânicos.

Já os caribenhos e os paquistaneses morrem 1,7 e 2,7 vezes mais do que os brancos. Em Nova Iorque, um estudo mostra que as mortes entre os negros são de 92,3 por 100 mil habitantes e entre hispânicos e latinos de 74,3, o que contrasta com menos de 50 por 100 mil para brancos e asiáticos.

O The Lancet afirma que a diferença na prevalência de doenças crónicas entre estas comunidades e os brancos não é suficientemente elevada para explicar por si só as discrepâncias na mortalidade, e explica que estas pessoas «trabalham muitas vezes em empregos que os colocam em risco, como de atendimento ao público e transporte de mercadorias ou entregas, e é menos provável que tenham empregos que lhes permitam fazer teletrabalho». Qualquer semelhança com os trabalhadores da Azambuja ou os residentes dos hostels não é mera coincidência.

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Susana Peralta Miguel Manso

2.4 A crise desigual em Portugal 

Em Portugal temos evidência limitada para analisar a crise em profundidade. Por exemplo, o Gabinete de Estratégia e Planeamento do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social publica regularmente atualizações sobre o número de pessoas que beneficiam de cada apoio desenvolvido pelo Governo para responder à crise pandémica — das baixas por isolamento ao apoio à família, passando pelo layoff simplificado e pelo apoio a trabalhadores independentes por redução de atividade. Este instrumento seria muito mais útil para caracterizar a forma como a crise atinge as pessoas de formas diferentes se nos desse, por exemplo, uma ideia acerca da distribuição de pessoas em layoff por intervalos de rendimento bruto. Só que não o faz. Para algumas medidas, como o layoff, temos a desagregação por sectores, pela dimensão da empresa, por região do país, e até por género. Mas não há nada que nos permita perceber a situação económica relativa dos trabalhadores e trabalhadoras abrangidos por esta medida.

Há, porém, outras fontes de dados (algumas, oficiais; outras, de inquéritos) que podemos analisar para fazer a caracterização possível dos fossos cavados pelo vírus. Tive a sorte de trabalhar no relatório «Portugal, Balanço Social 2020», uma parceria entre a Nova School of Business and Economics e a Fundação La Caixa, em conjunto com um investigador — Bruno Pessoa Carvalho — e uma investigadora — Mariana Esteves —, onde fazemos isso mesmo.

Há dois números que mostram que as mulheres foram mais atingidas do que os homens: até meados de outubro, representavam uma ligeira maioria no layoff (6% acima dos homens) e também nas inscrições nos centros de emprego (28% acima dos homens). Por outro lado, as mulheres foram as que mais dificuldade tiveram em encontrar trabalho, ainda segundo os dados dos centros de emprego. No layoff, atrás do valor médio escondem-se realidades sectoriais muito penalizadoras para as trabalhadoras. Um dos sectores mais atingidos pela crise, o de alojamento e restauração, tem mais 25% de mulheres em layoff do que homens.

Nem tudo é mau: as mulheres estão em maioria em alguns sectores de serviços que recorreram pouco a este sistema, como as atividades financeiras e imobiliárias, saúde e educação. Nestas duas últimas, há cinco vezes mais mulheres do que homens! Os sectores com maior desequilíbrio para o lado masculino são a construção, os transportes e a indústria transformadora, mas apenas o último tem um número elevado de trabalhadores em layoff. Os dois primeiros continuaram com níveis de atividade próximos do normal ao longo dos confinamentos.

Quando comparamos os inscritos no Instituto do Emprego e Formação Profissional em 2020 relativamente a 2019, verificamos que as pessoas com o ensino secundário são mais penalizadas do que as que têm o ensino básico ou ensino superior.

A possibilidade de manter a atividade profissional em regime de teletrabalho, que protege a saúde e o rendimento, é um privilégio concentrado nas pessoas com maior nível de ensino. O Inquérito ao Emprego, do INE, mostra que na área metropolitana de Lisboa mais de um terço das pessoas ficou em teletrabalho — a maior percentagem do país. No caso das pessoas com ensino superior, essa percentagem sobe para 54%. Combinando a informação disponível no Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social com a do Inquérito ao Emprego do INE, bem como de outros instrumentos estatísticos para analisar a realidade do trabalho em diferentes sectores e ocupações profissionais, percebemos que existe uma linha invisível entre as empresas que recorrem ao teletrabalho e as que recorrem ao layoff.

Certos sectores — como, por exemplo, o do alojamento e restauração — não conseguem operar em teletrabalho nem manter a sua atividade; por isso recorreram em grande escala ao layoff e os trabalhadores perderam rendimento. Acontece que estes sectores concentram uma percentagem elevada de baixos salários, por isso a perda de rendimento atingiu especialmente os mais vulneráveis.

No trabalho sobre a crise de 2020 que já referi, analisámos a composição da mão de obra que tinham em 2018 (último ano para o qual há informação disponível) os sectores mais afetados por esta crise. Em princípio, as características dos trabalhadores de um sector de atividade não variam muito no espaço de dois anos. Os sectores mais afetados pela crise, como a restauração, o alojamento e o retalho, têm mais contratos a prazo e mais mulheres do que a média nacional. No caso da restauração, encontramos também uma maior prevalência de trabalhadores que não completaram o ensino secundário. Outra dimensão interessante é a dos imigrantes. A restauração tem o triplo dos estrangeiros, e o alojamento o dobro relativamente à média nacional. Assim se insere mais uma peça no puzzle do grande desigualizador.

Outros sectores, como os serviços financeiros ou de informação e comunicação, conseguem manter a sua atividade em teletrabalho. A eles pertencem as trabalhadoras e os trabalhadores com mais privilégios, que mantêm o seu rendimento e protegem a saúde. São também mais bem pagos do que os restantes trabalhadores da economia. Como já referi acima, é a nova burguesia do teletrabalho.

A expressão «burguesia do teletrabalho» ilustra a ideia de que a forma como a economia escapou a uma crise mais profunda — recorrendo ao teletrabalho e ao digital — está concentrada nas pessoas mais bem pagas e escolarizadas. É claro que há profissionais diferenciados a trabalhar presencialmente, como os médicos, e teletrabalhadores explorados, como os operadores de call center. E sim, o teletrabalho é um desafio no equilíbrio entre a vida pessoal e profissional, mesmo para os mais privilegiados.

Podemos dizer que alguns trabalhadores são burgueses? Segundo o dicionário Houaiss, podemos: «Indivíduo pertencente à classe média, cujo mister não é manual e que goza de situação social e economicamente privilegiada.» Há um debate técnico sobre a definição sociologicamente certa, no qual não vou entrar. Quanto à propriedade dos meios de produção, convoco dois (grandes) economistas à discussão. Anthony Atkinson, no seu magistral Inequality: What Can Be Done, explica que já não há uma separação clara entre os ricos, que vivem do rendimento do capital, e os trabalhadores.

Em O Capital no Século XXI, Thomas Piketty afirma que mudámos de uma sociedade em que as pessoas no topo da distribuição dos rendimentos «detêm capital suficiente para viver de rendimentos» para uma sociedade em que as pessoas no topo da distribuição vivem de rendimentos do trabalho. Por debaixo do tapete dos vários confinamentos em diferentes graus há muitas partes da economia, como a indústria transformadora ou a saúde, que não só continuaram a trabalhar, como o fizeram presencialmente.

Uma parte destas pessoas, como os operários e os trabalhadores de limpeza, tem salários baixos. Mantêm o seu rendimento, mas, em contrapartida, enfrentam riscos de saúde consideráveis.

Os surtos nas plataformas logísticas são um reflexo desta realidade. São trabalhadoras e trabalhadores que levam às costas a economia que conta. Como escreveu Chuck Palahniuk em 1996 no livro Fight Club (tradução improvisada): «Lembrem-se disto. As pessoas que estão a tentar pisar são aquelas de quem dependem. Somos as pessoas que lavam a vossa roupa, cozinham para vocês e servem o vosso jantar. Nós conduzimos ambulâncias. Nós fazemos a vossa cama. Nós passamos a vossa chamada. Nós somos os cozinheiros e os motoristas de táxi e sabemos tudo sobre vocês. Nós processamos a vossa indemnização de seguro e a mensalidade do cartão de crédito. Nós controlamos cada parte da vossa vida.»

É uma triste ironia que recebam por essas funções essenciais salários baixos, que tenham contratos precários e que enfrentem condições de trabalho muitas vezes penosas. O Global Wage Report da Organização Mundial do Trabalho, publicado em dezembro de 2020, combina igualmente diferentes fontes de informação para estimar perdas salariais. A OMT coloca Portugal no conjunto dos três países da UE com maior perda estimada de rendimento do trabalho e maior aumento na desigualdade deste tipo de rendimento, a par com a Espanha e a Irlanda. Estamos, também, no topo da tabela no impacto desigual da crise entre mulheres e homens, isto é, na diferença entre queda estimada de rendimentos do trabalho para mulheres e homens. (...)