Ana Gomes teme que ainda exista “o culto de Sócrates” no PS

Ex-candidata à Presidência da República faz duras críticas a António Costa por continuar em silêncio relativamente ao processo do ex-primeiro-ministro.

Ana Gomes elogia Fernando Medina pelas críticas que esta semana fez a José Sócrates, mas critica duramente António Costa e outros dirigentes por continuarem calados. E afirma temer “que haja muita gente, nas bases do PS e não só, que ainda tem o culto de Sócrates”.

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Ana Gomes elogia Fernando Medina pelas críticas que esta semana fez a José Sócrates, mas critica duramente António Costa e outros dirigentes por continuarem calados. E afirma temer “que haja muita gente, nas bases do PS e não só, que ainda tem o culto de Sócrates”.

Na entrevista ao Programa Hora da Verdade, do PÚBLICO e da Renascença que a emite às 23h, a socialista e ex-candidata independente à Presidência da República, faz igualmente duras críticas aos diversos governos pela ineficácia do combate à corrupção. “Há algumas pessoas dentro das estruturas dos sucessivos governos que têm interesse em que não se vá ao fundo da corrupção, porque há uma tremenda promiscuidade”, afirma.

A perplexidade com que o país encarou a decisão instrutória do processo Marquês deve ter consequências?
Claro que deve ter consequências. É uma questão essencial para o país poder ter confiança nas suas instituições e não é só nas instituições da Justiça. É também nas instituições políticas, porque há um trabalho da Justiça, muito lento, que está a ser feito de forma que deixa os cidadãos muito inquietos – e eu estou farta de dizer que justiça demorada é justiça negada  e com estas incongruências que os cidadãos não conseguem compreender, de contradições brutais entre o que dizem uns operadores e o que entendem outros. Há também que ter consequências políticas.

Que consequências devem ser essas?
Olhe, por exemplo, aquelas que muito bem ontem [terça-feira] explicitou o presidente da Câmara de Lisboa, Fernando Medina, eleito pelo PS. Só tenho pena que não haja mais vozes do PS, eleitos do PS, a dizer aquilo, em particular os seus responsáveis máximos. E a tirar consequências políticas daquilo que se sabe, independentemente do que a Justiça venha a apurar. Não se pode deixar tirar consequência políticas, sabendo que um primeiro-ministro do PS “mercadejou” o cargo, que se aproveitou do cargo para tirar vantagens pessoais. Como dia diz ontem Fernando Medina, isto quebra a confiança dos cidadãos nas instituições políticas. E estou a falar de uma instituição que muito prezo, que é o meu partido, o PS.

Nesta quarta-feira de manhã, na sua conta do Twitter, saudou as palavras de Fernando Medina, mas também considerou “insuportável o silêncio ensurdecedor” de António Costa. O líder do PS já disse que não tinha nada acrescentar ao que disse há seis anos.
Não falei só de António Costa, falei também de outros dirigentes e até militantes do PS – porque, justamente, esse silêncio é de facto ensurdecedor. Dá ideia de que ou há comprometimento, ou há demissão de uma assunção de responsabilidade que o PS também tem de fazer – porque o PS tem de aceitar que se deixou instrumentalizar por um indivíduo que tinha muitas qualidades, mas também tinha tremendos defeitos, designadamente o de se aproveitar do cargo para tirar proveito pessoal em esquemas de corrupção, em detrimento do país.

Aquela linha do “À Justiça o que é da Justiça, à política o que é da política”, que tem sido utilizado por António Costa, não é mais aceitável, sobretudo a partir do momento que já não é só o Ministério Público, é também o juiz de instrução, que vem dizer que aquele indivíduo foi corrupto. E [há] aquilo que o próprio não contesta, que recebia dinheiro de um amigo, de forma completamente ilegal. Isto não é aceitável. O PS não pode fingir que isto não tem consequências políticas. O PS e os seus dirigentes continuam a não quer assumir que é preciso fazer uma auto-análise e uma autocrítica, até para efeitos preventivos, para isto não voltar a acontecer e, sobretudo, para os seus próprios militantes tirarem consequências.

Quando fala em consequências, fala sobretudo numa autocrítica, num pronunciamento público que assuma essa instrumentalização...
Temo que haja muita gente nas bases do PS e não só que ainda têm o culto de Sócrates.

Acha que sim?
Sim, porque Sócrates tinha grandes capacidades políticas, grande estamina, grande capacidade de comunicação. Eu fiz campanhas com ele e sei. Aliás, estamos a vê-lo agora, ao serviço de uma estratégia de se vitimizar.

E várias vezes disse que estava a ser alvo de um processo político.
Tudo aquilo que ele hoje está a fazer é ao serviço de uma estratégia de pessoal de vitimização, que, inclusivamente, passa pelo ataque ao PS. Essa autocrítica e essa desmistificação de Sócrates para as próprias bases do partido é essencial. Infelizmente vejo ainda muta gente enganada, a acreditar na tese da cabala, ou muita gente que alimenta essa tese, porque no fundo, de alguma maneira, foi conivente.

Mas pensa também que se devem tirar consequências ao nível do funcionamento do partido? Nem sequer só do PS. Como podem os partidos prevenir futuros casos destes?
O simples facto de o PS não fazer esse exercício de auto-análise do que representou a era Sócrates é uma desculpa para os partidos também não o fazerem. Este fenómeno não é exclusivo do PS, lamento dizer. O caso dos submarinos, e não só, é demonstrativo de que havia outros primeiros-ministros e ministros de outros governos envolvidos em esquemas de corrupção. O caso dos submarinos é aquele caso em que na Alemanha foram condenados corruptores de instâncias portuguesas e em Portugal, até hoje, não se quis saber quem eram os corrompidos. E quem tinha responsabilidade, pelo menos política, era um primeiro-ministro chamado José Manuel Durão Barroso e um ministro chamado Paulo Portas.

A própria reacção do PSD, pela voz de Rui Rio, parece-me ineficaz, insuficiente e mal dirigida. Não é só dirigir as críticas à Justiça, é reflectir sobre as responsabilidades políticas – porque quem dá, ou não dá, os meios à Justiça, quem permite à Justiça organizar-se de uma determinada maneira são os responsáveis políticos.

Quando diz que ainda há no PS e nas suas bases um culto de José Sócrates, está a dizer que há no PS um culto de corrupção?
Não. Estou a dizer que há pessoas que só querem ver o lado bom de Sócrates. Há actuação dele que foi meritória (...) e pessoas que não querem ver o lado negativo. Nós vimos no período em que ele esteve preso a organização das camionetas para visitar Sócrates...

Isso ainda não morreu?
Não. Houve responsáveis por isso, não houve? Esse exercício [de autocrítica] tem de ser feito pelo PS e, enquanto o PS não fizer, não está a dar garantias aos cidadãos de que isto não mais volta acontecer. E é também um incentivo para que os outros partidos não façam esse mesmo exercício, que até hoje não fizeram. 

Quando diz que a política condiciona a forma de a Justiça actuar, o que temos são problemas de meios ou problemas de leis e de procedimentos?
São de vária natureza. Desde logo de organização – por exemplo, vejo que agora até o próprio Conselho Superior da Magistratura já começa a admitir a hipótese de haver não um “Ticão” [ Tribunal Central de Instrução Criminal], mas uma espécie de audiência nacional, um tribunal especializado.

Acha que isso seria positivo?
Sim, mas há muito tempo que isso já poderia ter acontecido e foi recusado. Só dois dias antes de o juiz Ivo Rosa pronunciar o seu despacho é que o presidente do Supremo Tribunal de Justiça e Conselho Superior da Magistratura, de repente, acordou, parece, e veio criticar. E também a antiga procuradora-geral da República Joana Marques Vidal veio também criticar os megaprocessos. Eles conviveram com isso. Eles deixaram isso ir por diante. Eles podiam ter proposto, quer a audiência nacional, em vez do “Ticão”, quer a subdivisão de processos...

E os megaprocessos cresceram sobretudo com a procuradora Joana Marques Vidal.
Já vem de trás. (...) Desde a Operação Furacão, que já vai ao BES, aos outros bancos e aos esquemas de branqueamento de capitais, de fraude fiscal e de corrupção de que o Ministério Público estava farto de ter elementos, e nunca actuou no sentido da punição. Fez arranjos, fez acordos...

Atribui isso à falta de meios ou a procedimentos errados?
Falta de meios, procedimentos errados e falta de coragem dos operadores da Justiça e dos operadores políticos para mudarem as coisas. O que explica que o processo dos submarinos tenha sido arquivado e não tenha sido reaberto, quando houve novos elementos dos Panama Papers? A única explicação é que não houve vontade política de reabrir um processo que era politicamente muito sensível. Não há outra explicação. E o Ministério Público até fez um grande trabalho de investigação. Só que, quando chegou a vez de ver quem eram os corrompidos, aí, alto e pára o baile. Arquiva-se, prescrição, é sempre a prescrição que está na manga. Mas o que se pode fazer? Desde logo a a legislação sobre o enriquecimento injustificado. Chamem-lhe ilícito, chamem-lhe ilegal, é enriquecimento injustificado. E criar mecanismos de controlo que hoje não existem para o enriquecimento injustificado.

Ao contrário do que tem dito muita gente, incluído do PS, que isso é inconstitucional, porque implica uma inversão do ónus da prova. Não implica. O responsável político tem de fazer uma declaração de património, indicar a origem desse património e, se o Ministério Público chegar à conclusão de que há uma desconformidade, o Ministério Público investiga e a pessoa vai ter de provar qual é a razão da desconformidade. A questão da protecção dos denunciantes é essencial. E não é por acaso que vários operadores de Justiça, como Maria José Morgado, têm chamado a atenção de como isso essencial. Não é a delação premiada como no Brasil, é colaboração premiada com intervenção de um juiz. Ainda há dias foi apresentado pelo dr. Pedro Felício, que é da Europol, um relatório sobre a grande criminalidade ao nível europeu no qual chama a atenção para que a corrupção está frequentemente ligada à grande criminalidade organizada, isto é, o grande crime organizado usa os esquemas da corrupção para capturar os governos, para branquear o capital que resulta desses esquemas criminosos. Portanto, a protecção dos denunciantes e a colaboração premiada são instrumentos essenciais para as polícias puderem fazer o seu trabalho.

Outro elemento que não está de todo na nossa legislação, ou está muito incipiente: temos um gabinete de recuperação de activos e temos legislação que, aliás, foi aprovada já há muito tempo pelo António Costa, quando era ministro da Justiça, mas que está hoje completamente desactualizada, porque ao nível europeu temos muito mais trabalho. Eu própria trabalhei numa directiva, a 1673 de 2018, sobre o combate ao branqueamento através do processo penal que dispõe que os governos podem utilizar o instrumento da perda e da chamada “perda alargada”, sem estar à espera de uma decisão transitada em julgado relativamente a uma condenação, para, a partir do momento que vêem que determinados bens são produto de corrupção, ou de crimes fiscais ou de outros, imediatamente os congelar e até os confiscar. E isso é talvez o mais importante dissuasor elemento para os corruptos: perderem o que roubaram é o que mais lhes custa. E nós não vemos isto a funcionar em Portugal. Morreu Oliveira e Costa, o homem do BPN, e, se calhar, o que ele roubou já passou, branqueadinho, para a família ou para outras pessoas associadas a ele. Se calhar vamos ver o mesmo acontecer com Ricardo Salgado.

E ainda agora o juiz Ivo Rosa, numa das decisões que ele tomou que eu mais contesto, levantou os arrestos sobre os bens imóveis e o congelamento das contas bancárias, permitindo, portanto, àquela gente toda que estava sob suspeita, e que continua a estar, porque o processo não acabou, dispor destes activos e, eventualmente dissipá-los. Isto é muito grave e espero que seja uma das áreas em que o MP imediatamente accione os mecanismos, designadamente valendo-se desta directiva europeia.

Mas essa directiva não está ainda devidamente transposta, ou está mal transposta?
A anterior, que é de 2014, está mal transposta, isto é dito pelo próprio MP, e não é por acaso. E esta, a actual, está transposta juntamente com outra e é uma confusão total, mas o que vale é o texto original da directiva como foi aprovado em Bruxelas. Portanto, está aí para ser invocada pelo MP e para ser aplicada. Só não aplicam se não quiserem. O artigo 9.º é muito clarinho sobre essa questão da perda e, se calhar, em outros aspectos, pode ser de facto útil. Agora, porque muitas vezes estas transposições são mal feitas? É outra das coisas que precisam de ser alteradas...

Porquê?
Porque hoje em dia o Estado não tem especialistas nestas áreas, designadamente nas auditorias jurídicas, e faz encomendas, faz outsourcing a escritórios de advogados e a ditos “especialistas em fiscalidade”, etc., que são quem cria os alçapões para depois beneficiarem no aconselhamento dos seus clientes. Não é por acaso que isto acontece. Isto é um dos processos, juntamente com as portas giratórias, de captura do Estado. Se o Estado deixou de ter especialistas nos aspectos jurídicos nesta matéria e noutras e está sistematicamente a dar rios de dinheiro a escritórios de advogados para lhe fazerem as leis, os projectos de leis, etc... Então na área fiscal isso é mato, como ainda agora vimos no caso da EDP e das barragens. Quem é que fez aquele projecto de alteração do OE que permite que se aplique a este negócio da EDP das barragens? Foi um escritório de advogados, certamente pago pelo Governo, e que obviamente sabia bem o que estava na lei do OE e utilizou isso em favor de um seu cliente. Isto também explica estas contradições na lei que fazem com que os operadores, Ministério Público e juiz de instrução – e depois veremos o juiz do julgamento –, tenham de conviver e sobreviver nesta floresta de contradições legais.

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Por falar em barragens, alertou o Parlamento Europeu e a Comissão Europeia para a necessidade de investigar o negócio das barragens. Já teve alguma resposta?
Não, mas normalmente tenho, nunca me deixam sem resposta. Normalmente demora um mês.

Voltando à questão das directivas: José Sócrates foi detido ao abrigo de uma lei que ele tinha criado, ao transpor uma directiva europeia. Crê que a melhor maneira de combater crimes como a corrupção e o branqueamento de capitais é a jurisdição europeia?
Esta directiva que há pouco vos referi era exactamente para harmonizar legislações díspares nos diferentes países europeus. A ideia era harmonizar e determinar mínimos e sem dúvida que, em tudo o que diz respeito ao branqueamento de capitais e aos crimes subjacentes, nada teria sido feito em Portugal, se não tivesse havido as directivas europeias. Não tenhamos ilusões.

O que acha do plano do Governo contra a corrupção?
Eu valho-me do que disse a procuradora Maria José Morgado: “Em teoria geral está muito bonito, ninguém tem nada a dizer.” Mas a questão é a acção e um dos aspectos da acção é justamente meios, meios para o MP em particular e os tribunais poderem fazer o seu trabalho, meios de perícia financeira, informática, etc.

Há décadas que se ouve dizer que não há meios...
Mas isso é verdade. E não é desculpa para não actuar, mas é uma realidade. É irresponsabilidade política. Esses meios têm de vir da política. É para isso que temos um Ministério da Justiça, é por isso que há governo: para garantir que há esses meios. E, sem dúvida, face ao crime organizado e à alta criminalidade económica e financeira, esses meios periciais, designadamente de assessoria financeira e informática, são essenciais. E não existem. E não é só ao nível do MP, é dos tribunais. O Tribunal da Concorrência, que está a julgar os principais casos de criminalidade económica do país, designadamente na sequência das investigações feitas pelo próprio Banco de Portugal, e não têm meios nenhuns, nem sequer sala própria para fazer os julgamentos.

Fica-se com a ideia de que está a dizer que não arranjam os meios, porque não lhes interessa combater a corrupção.
Mas é verdade.

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Os sucessivos governos têm feito um compadrio?
Há bocadinho falava-lhe da Operação Lex, que é aquela que investiga juízes do Tribunal da Relação, como o juiz Rangel e outros. Sabemos, porque isso foi entretanto revelado, que a investigação esteve meses à espera para poder comprar um programa informático, que custava 20 mil euros, para decifrar os telefones “xpto” do juiz Rangel.

Os sucessivos governos têm interesse em que não se investigue e não se condene a corrupção? É o que está a dizer?
Há algumas pessoas dentro das estruturas dos sucessivos governos que têm interesse em que não se vá ao fundo da corrupção, porque há uma tremenda promiscuidade, porque há portas giratórias, porque há negócios que sempre se estiveram a fazer com compadrios...

E isso é transversal aos partidos?
Pois é. Não é só no PS, no PSD e no CDS, mas é evidente que é sobretudo nos partidos do poder. E os partidos de poder foram estes três. Portanto há imenso compadrio.

Há compadrio entre os partidos de poder e o crime organizado em Portugal?
Claro.

Mas só essa declaração valia que a Procuradoria-Geral da República abrisse imediatamente uma investigação, porque isso é uma acusação gravíssima de alguém que tem responsabilidades.
Quem fala desta ligação, que, aliás, se tem acentuado, entre o crime organizado (designadamente droga e não só) e a corrupção é a Europol. E não é só a droga. O caso BES é um caso obviamente de crime organizado. É um esquema de crime organizado. Não tem de estar necessariamente associado a crimes fiscais e de fraude fiscal qualificada. Os regulamentos especiais de regularização tributária – que começaram no Governo de Sócrates em 2005, o segundo em 2010 e o terceiro já no Governo de Passos Coelho, em 2012 – são um esquema de amnistia fiscal de legalização de fraude fiscal organizada. É uma vergonha. Os Rertes [planos de recuperação de capitais] são uma vergonha. São um instrumento de criminalidade. Foram desenhados de forma absurda. E, no entanto, houve muita gente que nem se apercebeu das implicações dos Rertes. Ainda agora o juiz Ivo Rosa se valeu dos Rertes para considerar que várias coisas já estavam prescritas e não se podiam prosseguir. Os Rertes são um esquema de criminalidade organizada.

Um esquema de criminalidade organizada no Estado português.
Sim, capturando o Estado português.

Portanto os governos, na sua opinião, estão a cometer crimes. 
Na minha opinião, sim. Aliás, eu denunciei-o várias vezes cá e às instâncias europeias. Fartei-me de lhes escrever a dizer o que se estava a passar, designadamente em 2012, quando já se sabia tudo o que se sabia em 2005 e 2010. Em 2012 é pior do que 2005 e 2010. A taxa começou a ser um bocadinho maior. Antes era 5% do pagamento de imposto e depois passou a ser 7,5% em 2012. E em 2010 e 2005 eram obrigados a repatriar o dinheiro da Suíça ou das Caimão ou de onde quer que fosse. Em 2012 não precisavam de repatriar o dinheiro. O dinheiro continuava limpinho lá nas offshores, na Suíça, nas Caimão, etc., pagavam 7,5% e o Estado legalizava a quantia com a agravante de que nem as autoridades tributárias tinham acesso aos Rertes. Estavam depositados no Banco de Portugal. Lembram-se da guerra que foi? Eu fiz essa guerra e depois o BE fez essa guerra e finalmente conseguiu-se recentemente que as próprias autoridades judiciais e tributárias tivessem acesso a quem eram as pessoas que tinham limpo o dinheiro através dos Rertes – porque antes o esquema estava de tal maneira feito que nem sequer se podia saber quem eram essas pessoas, Ricardo Salgado, etc.

Receia que o caso BES venha a ser mais um exemplo de justiça demorada, justiça negada?
Receio?! Já não é? O caso BES é de 2014, o mesmo ano em que foi detido Sócrates. Ricardo Salgado nem sequer foi preso até hoje. Outra coisa que devia ser considerada é a possibilidade de se fazer cumprir pena com base na decisão da primeira instância, aguardando a transição em julgado das sentenças. Neste caso, não há sentença, nem sequer julgamento. Há acusação, mais nada. O caso BES é outro, de uma complexidade certamente ainda mais intensa do que o caso Sócrates. E, sim, uma das minhas grandes apreensões com a decisão do juiz Ivo Rosa foi a de não pronunciar nem Ricardo Salgado, nem Zeinal Bava, nem Granadeiro, quando os fluxos financeiros estão demonstrados.

Como já estavam nos submarinos: não nos esqueçamos da gravação da Rioforte, que veio a demonstrar que pelo menos cinco milhões dos submarinos foram parar aos bolsos de Ricardo Salgado e dos outros capangas dele na Rioforte. Está nas gravações, foram públicas, como estavam os fluxos financeiros do Ministério Público – e nada aconteceu, como agora não acontece. O juiz Ivo Rosa, entre duas contradições de Hélder Bataglia – que, aliás, também aparece nos submarinos, era um dos homens da Escom –, preferiu ignorar a última, que era a enterrar Ricardo Salgado, dizendo que uma das últimas tranches de dinheiro que tinham chegado às contas de Santos Silva era para Sócrates. No mínimo, face à contradição, devia deixar ir para julgamento. Eu espero que essa seja uma das questões retomadas na reapreciação do processo – ainda que possa demorar mais seis anos, como disse o presidente do Conselho Superior da Magistratura…

Como é que deve ser vigiada a aplicação da “bazuca” europeia? Receia que seja mais uma fonte de suspeitas?
Receio, como toda a gente. A intervenção da Justiça é sempre a jusante: a Justiça vai atrás do prejuízo e no nosso país, com esta lentidão, vai anos-luz atrás do prejuízo e torna-se muito difícil reconstituir o que se passou. Mas há também o combate preventivo, e nada como a transparência. Do que nós precisamos é de um portal para os contratos e alocações de financiamentos que vierem a ser feitos, quer no quadro do PRR, quer no quadro financeiro plurianual. Total clareza, publicar tudo e haver alguém a fazer a triagem de quem são as empresas e associações que vão ser recipientes.

Não é possível o Estado exigir compliance às entidades privadas, como os bancos devem fazer, e o próprio Estado não o fazer. Não se admite que sejam contempladas empresas criadas na hora e que não tinham experiência nenhuma na matéria – como estamos a ver no caso das barragens, ou vimos na privatização dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo, em que se deu a concessão a uma empresa acabadinha de constituir para aquele fim, sem historial nem experiência nenhuma. Este tipo de arranjos não podem ser mais permitidos pelo Estado.

O Estado tem de ter alguma instância que faça esse trabalho de identificação de quem é quem, quem são os donos das instituições a quem vai dar dinheiro e tem de pôr tudo no portal de maneira que tudo possa ser escrutinado por todos nós. Isso é a maior garantia de que se detectará rapidamente alguma anormalidade e não se permitem esquemas de captura do interesse público.

Que avaliação faz do início do segundo mandato do Presidente da República? Julga que vai ser muito diferente do primeiro?
É normal que seja diferente, desde logo porque o Presidente não tem de ser reeleito e isso muda tudo na sua abordagem. Depois, porque as condições hoje são muito diferentes do que eram no primeiro mandato, quando havia um governo de que muita gente duvidava que conseguiria cumprir a legislatura. Hoje, não temos “geringonça”, temos uma situação de grande instabilidade, porque temos um governo que não tem maioria absoluta e devia estar a negociar, negociar, negociar em todos os azimutes – aliás, valendo-se do exemplo bem sucedido da “geringonça”. Temos um primeiro-ministro que não quis fazer uma “geringonça 2”, que lhe daria mais estabilidade, para não ter de negociar in extremis. Vai ser complicado. Não é por acaso que o Presidente, neste afrontamento que teve com o Governo sobre os apoios sociais, disse que promulgou o decreto, para, de forma preventiva, incentivar o Governo a negociar o próximo Orçamento do Estado.

Para já, portanto, faz uma avaliação positiva
Para já sim. Eu teria feito o mesmo que o Presidente da República fez.

Acha que o Governo deve ser incentivado, estimulado, forçado a negociar mais?
Acho que sim, isso é essencial. Já temos uma crise sanitária terrível, que está a ter consequências económicas e sociais devastadoras. Precisamos de crise politica? Não! Seria devastador para a capacidade de o país recuperar. O Governo tem de negociar, tem de fazer passar os próximos Orçamentos do Estado.

O que é que ficou da sua candidatura presidencial? Como é que vai continuar a sua intervenção política?
Fiquei eu, de cabeça independente, ficaram todos os amigos que me apoiaram – conheci novas pessoas do meu partido, de outros partidos e independentes de quem fiquei amiga , mas não há nenhuma formação. Sou militante do PS e acho que é dentro do PS e dentro dos partidos políticos que temos de fazer o combate pelo reforço da democracia, pelo reforço das instituições democráticas, entre elas os próprios partidos políticos. Acusam-me de ser populista, mas eu não quero destruir as instituições, eu quero reforçá-las e regenerá-las – incluindo o meu partido, que é o PS. Daí que eu fale livremente. E resta um sentimento de independência maior do que nunca, de que nunca abdiquei. Voltei ao comentário político, estou a escrever sobre o processo de 1999 em Timor, acho que é minha obrigação e é a minha prioridade.

Há cerca de um mês entregou na Procuradoria-Geral da República um conjunto de documentação em que pedia a reavaliação do partido Chega, porque considera que tem um discurso racista e xenófobo. Já recebeu alguma resposta?
Já. Sei que está a ser levado a sério, quer na Procuradoria-Geral da República, quer no Tribunal Constitucional. É o que lhe posso dizer. Também mandei esses documentos para as instâncias europeias e do Conselho da Europa – que fez recentemente um relatório a falar da preocupação do fenómeno racista e xenófobo em diversos países…

Está a dizer que a ilegalização do Chega está em cima da mesa?
Eu assumi, fiz aquilo que achava indispensável e achava que devia ter sido o Presidente da República – ou outra instância política a fazer. E, sim, sei que o assunto está a ser seriamente estudado pelos órgãos competentes.

Para terminar, e mudando muito de assunto, uma pergunta sobre a Etiópia, país que conhece bem e que está a passar uma fase muito complicada. Como vê a situação?
Não fiquei muito surpreendida com este conflito no Tigré, porque são os highliners do regime do antigo primeiro-ministro, um regime a que eles chamam “étnico-federalismo”, que no fundo é uma regra de dividir para reinar. Eles arranjaram um conflito no Tigré e há violações dos direitos humanos de parte a parte. Ainda hoje estive a falar com um responsável da Etiópia que me disse que neste momento há investigações da Comissão Nacional de Direitos Humanos em conjunto com instâncias das Nações Unidas.

E não tenho dúvida de que boa parte dos relatos sinistros que ouvimos aqui, que tendem apenas a culpar o lado governamental, fazem parte de uma narrativa construída pelos highliners do partido TPLF [Frente de Libertação do Povo Tigré], que têm muitos amigos, inclusive na União Europeia, no Reino Unido e até na Administração Biden – e que ajudaram a fazer, nos media internacionais, um coro sinistro, como se todas as violações de direitos humanos estivessem do lado do Governo. O TPLF são um grupo sinistro, os métodos dele são sinistros.