Os diferentes barcos da educação
Temos de evitar que no futuro os alunos de hoje sejam olhados como os náufragos da pandemia. O desafio é garantir que os programas de apoio às desigualdades ganhem novo fôlego e que os desníveis nas aprendizagens possam ser reduzidos na próxima década.
Olhando para o Programa do Governo publicado no final de 2019, vemos que grande parte da política da educação está apontada para o principal desafio contemporâneo do setor: “A função social da escola pública só estará inteiramente cumprida quando a origem de cada um não for um aspeto relevante para o sucesso ou insucesso dos seus resultados.” Utilizar a escola como elevador social, capaz de mitigar as grandes desigualdades da sociedade portuguesa.
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Olhando para o Programa do Governo publicado no final de 2019, vemos que grande parte da política da educação está apontada para o principal desafio contemporâneo do setor: “A função social da escola pública só estará inteiramente cumprida quando a origem de cada um não for um aspeto relevante para o sucesso ou insucesso dos seus resultados.” Utilizar a escola como elevador social, capaz de mitigar as grandes desigualdades da sociedade portuguesa.
O Governo, antes da pandemia, estava bem consciente do maior desafio do país. Não estamos todos no mesmo barco, mesmo quando todos estamos sentados numa carteira da escola pública.
Os dados da OCDE em 2018 são claros, as aprendizagens estão em Portugal muito ligadas ao estatuto socioeconómico e cultural (ESEC) das famílias (mede a capacidade económica das famílias, o nível de escolaridade dos progenitores e também o acesso a bens culturais). No caso português, o nível baixo neste indicador reflete essencialmente a percentagem de alunos provenientes de meios empobrecidos onde os progenitores têm baixa escolaridade (cerca de 50% têm o 9.º ano ou menos, PISA 2018).
A diferença de estatuto socioeconómico está associada, em todos os países da OCDE, a uma diferença nas aprendizagens, favorável aos alunos com maior estatuto socioeconómico. Portugal está entre os países onde esta diferença é mais acentuada: 2,7 anos de diferença nas aprendizagens aos 15 anos [1].
Com as necessidades de confinamento e o fecho intermitente das escolas a partir de março de 2020, esta realidade tornou-se mais visível e todos compreendemos que a educação à distância traz consigo o potencial alargamento desta diferença. As desigualdades sociais, económicas e culturais impossibilitaram para muitos o simples acompanhamento das aulas. No entanto, as escolas, as autarquias e a tutela desdobraram-se em garantir outros recursos de acesso a conteúdos – programas de televisão e rádio, pacotes pedagógicos e apoio tutorial personalizado.
Ainda não sabemos a dimensão das perdas, a não ser de forma informal pela perceção dos docentes em setembro de 2020, quando os alunos regressaram após uma ausência demasiado longa – mais de seis meses. Graves deficiências na leitura foram sinalizadas pelos professores ao início do segundo ciclo, mas não sabemos a dimensão e não temos pontos de comparação.
O Instituto de Avaliação Educativa (Iave) realizou uma prova de aferição a 30 mil alnos do 3.º, 6.º e 9.º ano para aferir a qualidade da literacia em leitura, matemática e ciências. Concluiu que as maiores dificuldades estavam no 6.º ano de escolaridade, sem, no entanto, ser possível estabelecer pontos de comparação com anos anteriores, pois não temos testes similares para comparar. Há demasiados alunos com lacunas nas aprendizagens, mas essa já era a realidade anterior.
A ideia de perdas irrecuperáveis é um pouco catastrofista. Apesar de tudo, temos algumas lições que podem ser retiradas da emergência e transportadas para um ensino presencial de maior qualidade:
- As escolas conseguem utilizar a autonomia e houve escolas onde se criaram equipas e respostas em grande sincronia com as necessidades do meio envolvente. A seu tempo teremos de realizar um levantamento sistematizado destas respostas e compreender como as podemos fazer perdurar para o período de recuperação.
- Os pais aproximaram-se das escolas e passaram a valorizar o trabalho e o empenho dos professores. Pode ser que se tenha aberto uma porta para maior cooperação e para derrubar algumas barreiras de desconfiança mútua.
- A cooperação com as autarquias e com a sociedade civil acentuou-se com ajudas a surgirem de diversas frentes. A escola pertence à sociedade e todos podemos assumir responsabilidades parciais para um sistema de educação mais inclusivo.
- A multiplicidade de respostas à emergência educativa foi expressiva, com aulas online, programas de televisão e rádio, pacotes pedagógicos disponibilizados às famílias e também apoio económico aos mais carenciados.
- A diversidade pedagógica e a adaptação às tecnologias digitais foi acelerada, e poderá ser que no futuro se consiga importar algumas das vantagens destas aprendizagens no ensino presencial.
As desigualdades já existiam. A pandemia tornou-as mais visíveis e talvez mais acentuadas. A consciência da realidade pode ser utilizada para incentivar os programas de combate ao insucesso e apoio à inclusão.
As verdadeiras perdas e o intensificar das desigualdades só se irão revelar na sua plenitude dentro de alguns anos. Na educação, o presente só se revela no futuro. É difícil medir. Ainda mais difícil quando não temos nada de parecido com que comparar.
Temos de evitar que no futuro os alunos de hoje sejam olhados como os náufragos da pandemia. O desafio é garantir que os programas de apoio às desigualdades ganhem novo fôlego e que os desníveis nas aprendizagens possam ser reduzidos na próxima década.
[1] Segundo a OCDE, cada 40 pontos equivale a um ano de aprendizagens
Investigadora em Políticas de Educação
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico