E depois da infecção? A “névoa mental” de quem sofre de covid-19 prolongada

A infecção já foi, em alguns casos, há mais de um ano. Mas os sintomas perduram. Quem os sente descreve uma “névoa mental”. Por isso, uma fotógrafa da Reuters captou-os com um plástico azul a cobrir a câmara — para entrarmos na nuvem.

Fotogaleria

Teresa Dominguez, 55 anos, estava a fazer as compras semanais perto de casa, em Collado Villalba, no Norte de Madrid, em Espanha, quando percebeu que estava a vaguear sem rumo, sentindo-se perdida nos corredores, sem ideia do que precisava. Pagou o que já tinha nas mãos e saiu.

A “névoa mental”, como descreve a incapacidade de se concentrar, e a fadiga permanente depois de fazer as tarefas simples do dia-a-dia têm constrangido a sua vida no último ano, desde que em Março de 2020 a infecção por covid-19 evoluiu para o que médicos chamam síndrome pós-covid, ou “covid-19 prolongada”.

“Fisicamente sinto-me como a minha mãe de 91 anos”, diz Dominguez, mãe de dois filhos e assistente social especializada em deficiências, que tem estado de baixa desde Novembro de 2020.

Foto
Alguns médicos descredibilizaram os sintomas de Shalini Arias, 23 anos, que passou a confiar na sua rede de suporte. "Eles não me julgam e ajudaram-me a aprender a viver com isto da melhor forma que posso", disse. Arias pediu a um amigo que lhe fizesse uma tatuagem para a relembrar da importância da família, amigos e colegas. "Significa crescimento e amor, o amor e apoio que eu sinto das pessoas que me estão a ajudar a ultrapassar estes tempos difíceis." Reuters/SUSANA VERA

Um inquérito recente da Sociedade Espanhola de Médicos Gerais e de Família (SEMG) — que entrevistou 2120 pessoas, das quais 1834 tinham sintomas compatíveis com a doença —, descobriu que o perfil típico da síndrome pós-covid era uma mulher de 43 anos que tinha, em média, 36 sintomas.

Ainda que as infecções severas de covid-19 sejam mais frequentes em homens, a covid-19 de “longo curso” parece afectar mais as mulheres — elas perfazem cerca de 80% dos casos no estudo da SEMG.

Oito mulheres e dois homens falaram com a Reuters sobre a sua experiência de “covid-19 prolongada” e sentaram-se com um fotógrafo para fazer retratos através de um “nevoeiro”, feito com plástico azul, para uma melhor percepção de como a condição os faz sentir.

Fotogaleria
Reuters/SUSANA VERA

Como Dominguez, eles relatam sentir-se frequentemente incapazes de fazer tarefas rotineiras, como ir às compras ou limpar. Para alguns, até assistir a um filme pode ser extenuante.

A Organização Mundial da Saúde disse, em Fevereiro, que entender as condições pós-covid-19 era uma “clara prioridade”, apontando que, “infelizmente, alguns (pacientes) foram tratados com descrença ou falta de compreensão”.

Muitas mulheres que falaram com a Reuters, incluindo a antropologista de 23 anos Shalini Arias, disseram que os médicos inicialmente não valorizaram os sintomas, enquanto os chefes ou colegas pensavam que estavam a exagerar.

Foto
Maria Eugenia Diez, enfermeira de 43 anos, e a piscina de casa. "A primeira vez que tentei dar um mergulho na piscina, achando que a água me ia ajudar a melhorar os sintomas, foi muito angustiante. Comecei a sentir-me sem ar, quanto mais fundo mergulhava. Tive que me sentar nas escadas para recuperar o fôlego." Reuters/SUSANA VERA

“Senti-me duplamente incompreendida, como se fosse hipocondríaca ou uma mulher muito exigente que ia ao médico porque não tinha mais nada para fazer”, disse Arias.

A OMS diz que aproximadamente um em cada dez pacientes de covid-19 continua debilitado depois de 12 semanas, e muitos por mais tempo.

Outros dois estudos, da Britain Leicester University e International Severe Acute Respiratory and Emerging Infections Consortium, sugeriram que mulheres na casa dos 40 e 50 anos têm mais risco de ter problemas de longo prazo depois de infecções por covid-19.

Foto
Anna Kemp, tradutora britânica a viver em Espanha, diz que a covid-19 piorou a sua capacidade de comunicar em espanhol. Diz que lhe falta agilidade mental. Teve de desistir da dança, natação e das longas caminhadas que fazia, devido à fadiga. "A primeira vez que consegui chegar da minha casa ao parque, senti que estava a voar. São apenas alguns metros, e tive que me sentar para descansar, mas senti que o mundo se estava a abrir para mim." Reuters/SUSANA VERA

Sintomas de um ano fizeram Maria Eugenia Diez, uma enfermeira de 43 anos, abdicar de exercício e dispensar conferências médicas, onde sentia dificuldade em concentrar-se.

Por vezes, sentia-se como uma novata no trabalho, apesar dos 20 anos de experiência, e inventou rotinas para se lembrar de tarefas que, normalmente, desempenhava automaticamente. “Acontece-me quando conduzo. Sou muito mais desajeitada. Tenho de me lembrar todos os dias de quantas mudanças o carro tem, onde estão os retrovisores, as escovas, a água, os pedais”, disse.

Anna Kemp, uma britânica de 51 anos a viver em Espanha há quase 30, diz que a condição afectou a sua capacidade de comunicar em castelhano, e que deixou de acompanhar programas de televisão complexos porque não conseguia seguir o enredo.

Foto
Amaia Artica, 42, e um termómetro. Fadiga permanente, febre diária, dores nos músculos e articulações, insónia e lapsos mentais constantes têm-na impedido de fazer o trabalho que adora numa creche. "O meu médico de família tem sido muito compreensivo, mas nem todos são assim. Um especialista disse-me para parar de medir a temperatura, que se não prestasse atenção deixaria de ter febre porque era tudo da minha cabeça." Reuters/SUSANA VERA

Pilar Rodriguez, vice-presidente da SEMG, disse que a sua equipa de investigação estava na fase inicial de um estudo sobre se as hormonas podem ou não ser um factor na “covid-19 prolongada”, uma vez que mulheres grávidas parecem ser menos susceptíveis, ou se a resposta é específica do sistema imunitário de cada género.

Beatriz Perez, uma engenheira informática de 51 anos, costumava fazer caminhadas aos fins-de-semana; agora, raramente consegue completar o desafio pessoal de descer as escadas do prédio onde vive, de oito andares. Subir, nem se fala.

Foto
Nuria Sepulveda, 44, e um pneu da sua bicicleta. Nuria ficou infectada em Março de 2020 e acabou por ser diagnosticada com pneumonia, hemorragia no intestino, infecção urinária, entre outros. Tentou voltar ao trabalho em Novembro, mas a fadiga era tanta que "três horas pareciam 12". Ávida praticante de desporto, lembra-se de ficar aliviada quando voltou a andar de bicicleta: "Foi a 28 de Setembro, o primeiro dia em que consegui treinar outra vez. Não conseguia parar de chorar." Reuters/SUSANA VERA

Fadiga permanente e esquecimento têm-na afastado do trabalho, e Perez diz que “a pior coisa é viver com a incerteza” de não saber quando ou se vai recuperar.

Esses medos atormentam muitos, mas a enfermeira Diez tenta manter-se positiva. “Estou a adaptar-me ao que tenho, vou desfrutar do que tenho agora e não consigo parar de pensar no que tinha antes”, disse. “É difícil, porque sinto muito a falta disso.”