Webdocumentário: uma narrativa interactiva e não-linear

Ao contrário do documentário tradicional, onde o espectador tem acesso a um vídeo único e ao conteúdo fechado, no webdocumentário é possível criar uma experiência interactiva com uma produção que vai para além do vídeo, recorrendo a diversos formatos: fotografia, ilustração, animação e texto, entre outros.

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Patrick/Unsplash

Foi no final do século XIX que a sageza e a teimosa de homens como Louis Le Prince, Thomas Edison, Auguste e Louis Lumière ou Georges Méliès abriram caminho à produção audiovisual e ao cinema moderno. Da película ao digital, entre o mudo e o sonoro, o cinema ganhou estatuto de arte, em 1911, e não parou de evoluir até aos nossos dias, conquistando seguidores e transformando mentalidades em todo o mundo. 

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Foi no final do século XIX que a sageza e a teimosa de homens como Louis Le Prince, Thomas Edison, Auguste e Louis Lumière ou Georges Méliès abriram caminho à produção audiovisual e ao cinema moderno. Da película ao digital, entre o mudo e o sonoro, o cinema ganhou estatuto de arte, em 1911, e não parou de evoluir até aos nossos dias, conquistando seguidores e transformando mentalidades em todo o mundo. 

Há sensivelmente 130 anos, os irmãos Lumière defendiam uma utilização meramente científica do aparelho por si inventado, o cinematógrafo. Todavia, houve quem discordasse. Para o ilusionista francês Georges Méliès, que viria a ser um dos primeiros cineastas, tais equipamentos podiam e deviam ter outra função: a de entreter o público. A Viagem à Lua (1902), a produção mais marcante de Méliès, contribuiu decididamente para o desenvolvimento do cinema. A definição de técnicas e de traços narrativos do cineasta francês foram rasgos fundamentais na estruturação da sétima arte. Depois, ao longo dos anos, outros cineastas colaboraram significativamente para a evolução do cinema. Entre eles o norte-americano Robert Flaherty e o soviético Dziga Vertov, pioneiros no género documental; ou o português Leitão de Barros, realizador de Maria do Mar (1930), a primeira docu-ficção nacional.

Ora, esta crónica de cinema pretende versar sobre o género documental ou, mais especificamente, sobre webdocumentários. Afinal, pergunta o leitor, o que é um webdocumentário? Já lá vamos. Primeiro, importa examinar o contexto.

Como referi anteriormente, o cinema soube navegar no mar turbulento do progresso; se olharmos para um cenário mais abrangente, no caso, o da produção audiovisual, o resultado é análogo: mutação constante. O próprio mercado de distribuição audiovisual está em processo de transformação. As plataformas de streaming vieram alterar os hábitos de consumo dos espectadores. A título de exemplo, um relatório do Observatório Europeu do Audiovisual revelou que, em 2019, em Portugal, a taxa de subscrição destas plataformas ficou acima da média da União Europeia.

Também não foi por acaso que a nova administração da RTP defendeu recentemente uma aposta na produção de conteúdos multiplataforma, com o objectivo de chegar ao público jovem. Faz sentido. Afinal, os jovens passam cada vez mais tempo na internet, no computador, no telemóvel ou no tablet. É na web que procuram diariamente novos conteúdos, querem-nos estimulantes e disruptivos. Esta necessidade óbvia abre a porta a conceitos como o webdocumentário.

Segundo o CineAcademia, a primeira utilização do termo “webdocumentário” ocorreu no festival Cinéma Du Réel, em França, para se referir a todas as produções do género documental criadas e produzidas para a web. Mas o conceito não é tão simples porque a web, enquanto meio difusor, tem características diferenciadoras. Numa plataforma digital, a narrativa não exige – nem deve ter – a linearidade de um produto televisivo ou de sala de cinema; além disso, é possível – e desejável – trazer o espectador para a cena, fazê-lo interagir com o conteúdo.

Martin Percy, realizador premiado e especializado em vídeo interactivo, defende que a web não serve somente para distribuir este tipo de conteúdos, antes para os moldar com singularidade. Ou seja, se um webdocumentário for apresentado na televisão ou numa sala de cinema perde a sua essência interactiva e não-linear.

Aqui chegados, podemos aventar uma definição: o webdocumentário – também conhecido por documentário interactivo ou webdoc – é um projecto documental multimédia, alusivo a um tema específico, com uma narrativa interactiva e não-linear. Ao contrário do documentário tradicional, onde o espectador tem acesso a um vídeo único e ao conteúdo fechado, no webdocumentário é possível criar uma experiência interactiva com uma produção que vai para além do vídeo, recorrendo a diversos formatos: fotografia, ilustração, animação e texto, entre outros.

Importa acrescentar que é uma produção multimédia planeada minuciosamente para o utilizador da web. Este, ao imergir na narrativa elaborada pelo autor, descobre uma narrativa aberta onde pode e deve navegar a seu bel-prazer. Além disso, não existe um play, pause, stop. A interacção é fundamental e a visualização só é possível mediante a acção do espectador, que traça o seu caminho seleccionando vídeos, imagens e textos com palavras-chave e hiperligações.

Sandra Gaudenzi, co-autora de I-Docs: The Evolving Practices of Interactive Documentary, afirma que a diferença fundamental entre o documentário tradicional e o webdocumentário não é a evolução do analógico para o digital e sim “a passagem da narrativa linear para a interactiva”.

Os primeiros webdocumentários surgiram em França, país pioneiro no género, mas, hoje, o documentário interactivo é uma aposta ganha em vários países do mundo, com destaque para Inglaterra, Espanha, Canadá, Estados Unidos, Brasil ou Colômbia. O número de produtoras especializadas cresce todos os anos e há plataformas e canais televisivos a investir seriamente em investigação e na produção de projectos do género, como a ARTE TV, a i-Docs, a BBC ou o National Film Board of Canada.

Em Portugal, a produção de webdocumentários é relativamente recente, mas existem alguns exemplos: Casa do Vapor (PÚBLICO), A grande debandada e Os anos da troika (Renascença), Rodom e Cidade Fábrica (Ocidental Filmes – com apoio do ICA).

Num país onde 84,5 % dos agregados familiares têm Internet (INE – 2020) e 99,5 % dos jovens entre os 16 e os 24 anos navegam na web (Pordata, 2020), há espaço de sobra para o surgimento de novos projectos na área, que sejam interessantes e inovadores e que tenham a capacidade de agarrar os jovens perdidos na infinitude de conteúdos online.

O webdocumentário é um conteúdo digital por natureza, assistido em computadores ou disponíveis móveis com ligação à Internet, uma característica decisiva para responder à necessidade identificada pela nova administração da RTP.

Mas não quero terminar esta crónica cingindo o webdocumentário a uma faixa etária. Seria um erro crasso. Por ser um projecto de índole documental, desperta a curiosidade em pessoas de todas as idades e, afinal, a web não é território exclusivo dos mais novos: 65,3 % dos portugueses entre os 55 e os 64 anos utilizam a internet; entre os 65 e os 74 anos, são 39 % (Pordata, 2020). É inegável que o digital conquistou uma parte muito significativa da população portuguesa, que está a despertar para a existência de novos conteúdos. Haja criatividade e arrojo para os criar; e incentivos de entidades públicas e privadas para os produzir.