Forças Armadas: reforma ou revolução?
É responsabilidade política e do Estado de direito conferir estabilidade e dignidade às FA em que o país se reveja com orgulho.
“A necessidade de preparação da defesa não significa a iminência da guerra. Pelo contrário, se a guerra estivesse iminente, a preparação da defesa já vinha tarde”
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“A necessidade de preparação da defesa não significa a iminência da guerra. Pelo contrário, se a guerra estivesse iminente, a preparação da defesa já vinha tarde”
Winston Churchill
Numa altura de grave crise sanitária, económica e social, o ministro da defesa nacional (MDN) pretende iniciar a reforma da estrutura superior das Forças Armadas (FA), que vai concentrar ainda mais poder operacional e reforço de competências no Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas (CEMGFA). O ministro já assumiu que deseja um consenso o mais alargado possível. Será viável sem aceitação das chefias militares?
A iniciativa pretende que os chefes do Estado-Maior dos Ramos passem para a efectiva dependência directa do CEMGFA no domínio operacional (o que já se encontra estabelecido na lei), acrescentando também a transferência da gestão corrente de recursos, hoje sob alçada do MDN. Na realidade a actual Lei de Bases de Organização das Forças Armadas (LOBOFA) já representa avanço claro na qualidade da nossa estrutura de defesa nacional e da sua componente militar, pois está prevista a concentração do comando operacional das FA no CEMGFA.
Não haja dúvidas que, de facto, é necessário promover uma maior eficácia do comando operacional conjunto assegurando uma melhor coordenação dos meios navais, terrestres e aéreos, assim como dos cibernéticos e da saúde militar. Mas isso não passa pela ideia peregrina de subalternizar os Ramos reforçando o papel do CEMGFA com autoridade completa.
A Defesa Nacional (DN) não é responsabilidade exclusiva das FA que constituem o seu pilar essencial. Porém, o poder político tem revelado um profundo desconhecimento da realidade das FA e DN. Para decidir é necessário conhecer ou saber ouvir quem conhece e sabe.
Ninguém discordará da necessidade de modernização das nossas FA. Todavia, tem sido colocada recorrentemente a questão: que FA se pretendem? E nem sempre os cidadãos entendem a necessidade da sua existência! Tem-se, inclusive, questionado a sua sustentabilidade. Por outro lado, todos os governos têm procurado fazer reformas. Por que não resultam?
Os governos - quando assumem funções num quadro de dificuldades financeiras - precisam de fazer cortes orçamentais e, como não sabem bem para que querem as FA, fazem “cortes cegos” e cativações com o argumento de que é necessário optimizar recursos. Isto acontece, porque ainda não houve a assumpção plena da importância e dos custos da função de soberania.
Em vez da “revolução” ou “reformulação” da estrutura superior das FA deviam ser tomadas medidas urgentes para fazer face ao grave problema da falta de efectivos, falta de equipamentos, progressiva degradação meios por falta de recursos e deterioração das condições de vida dos militares, bem como a discriminação de vencimentos e o deficiente apoio à saúde dos militares.
Nesse sentido, há legitimidade para questionar o modelo de FA que o país necessita, mas não podemos padecer da doença que consiste em modificar por modificar, às vezes por razões de puro penacho legislativo ou por conveniência alheios ao interesse nacional.
Com efeito, há necessidade de melhorar o modelo, mas “sem atropelos à unidade, continuidade e personalidade da instituição” (ex-Presidente da República, General Ramalho Eanes), pois a liderança das FA é diferenciada de outras instituições. Naturalmente tem de se actualizar para responder eficazmente às mudanças que o Conceito Estratégico de Defesa Nacional (CEDN) e o Conceito estratégico Militar (CEM) estabelecem.
Contudo, esse modelo e a sua sustentabilidade não devem ser discutidos de forma anacrónica e com uma visão meramente economicista ou contabilística, porque é redutora da Segurança Nacional. Os portugueses não querem que a crise financeira, económica e social se transforme também numa crise de segurança. A crise não pode comprometer o exercício da autoridade do Estado e as funções de soberania.
A reforma anunciada de forma distorcida e com argumentação falaciosa é uma “questão complexa para a qual existe apenas princípios orientadores, pelo que se exige bom senso numa discussão que devia, sobretudo, ser profícua e esclarecedora” (vice-almirante Reis Rodrigues).
O modelo de FA decorre das opções assumidas no CEDN e do CEM dele resultante, devendo ser mais valorizado o seu carácter e capacidades conjuntas sem que, para tal, seja necessário proceder à alteração proposta pelo MDN.
Acresce não estar demonstrado que a actual estrutura não funciona com eficácia, pois as unidades e meios que os Ramos preparam e entregam ao CEMGFA para uso operacional têm sido permanentemente alvo de referências muito elogiosas ao nível internacional.
É arriscado e dispensável substituir o sistema de equilíbrio de autoridade em vigor nas FA, concentrando numa entidade (CEMGFA) um conjunto tão alargado de poderes. Além disso, como é hábito dos nossos governantes, não foram quantificados os custos desta reforma. Será que vai melhorar a eficiência?
Por outro lado, em vez desta reforma enviesada copiando modelos de outros países desfasados da nossa cultura organizacional, devia ser feita a reforma da DN e não apenas a da estrutura superior das FA, que deverá ser uma consequência devidamente integrada.
Neste contexto, importa salientar que CEDN resulta do planeamento estratégico do Estado e é estruturante da Política de Defesa Nacional. O documento de 2013 carece de revisão e devia permitir clarificar inequivocamente o que se pretende das FA, cujas reformas foram iniciadas há trinta anos.
O anúncio de propostas e iniciativas reformadoras com a antecipação de apoios partidários – para influenciar a opinião pública - pode condicionar o ciclo de planeamento estratégico, que tem de ser consequente sem contradições dos pressupostos da revisão. E, só depois da intervenção dos órgãos definidos na lei, será possível concluir os objectivos, a configuração básica das FA, os meios necessários e os recursos para os assegurar e manter, que melhor sirvam os portugueses. Refira-se que todo o processo legislativo subsequente deve impor um amplo consenso como é exigível na área da DN.
A iniciativa do MDN teria sido também uma excelente oportunidade para lançar um debate mais alargado sobre o nosso sistema de segurança e defesa. Nestas circunstâncias, Portugal necessitaria de um Conceito Estratégico de Segurança Nacional (CESN) que substituísse o CEDN e englobasse também as diferentes dimensões do desenvolvimento e da segurança. Seria assim possível evitar disposições conflituantes e melhorar a articulação entre a LDN e Lei de Segurança Interna, assegurando uma maior eficácia e eficiência entre as FA e Forças de Segurança.
Apesar de tudo, nos últimos anos, tem havido alterações que permitem ter umas FA com capacidades para integrarem forças multinacionais, que cumprem as missões. O seu prestígio tem contribuído de forma indelével para a afirmação e credibilidade externa de Portugal, o que deve ser explicitado aos cidadãos, pelos órgãos de soberania, contrariando o discurso de “inutilidade” das FA. Saber fazer pedagogia sem demagogia.
Concluindo, seria desejável que o novo CEDN ou um CESN pudesse ser um documento realista e ter um papel decisivo na configuração, apetrechamento e redimensionamento das FA. Mas integrado com as outras politicas sectoriais numa Estratégia Nacional (Estratégia Global do Estado), que enquadrasse as reformas estruturantes. O actual CEDN assume-se com presunção como Estratégia Nacional, quando há sectores do Estado que nem sequer foram consultados.
Só assim pode ser concretizada a reforma das FA que são um importante instrumento para a salvaguarda da identidade, coesão e soberania nacionais. É responsabilidade política e do Estado de direito conferir estabilidade e dignidade às FA em que o país se reveja com orgulho.