Avós, imponham os vossos limites
Os filhos vivem desde o início dos tempos a exigir aos pais, sem pensarem muito sobre as suas necessidades — fazemo-lo de uma forma tão natural que já nem reparamos.
Querida Ana,
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Querida Ana,
Acho que a maioria dos avós descobriu muitas coisas boas neste confinamento. Descobriram que os filhos são muito mais capazes de tomar conta de si próprios e das suas famílias do que imaginavam, que os netos têm uma capacidade praticamente inesgotável de tirar partido das limitações que lhes são impostas, e que as relações de amor e cumplicidade não se perdem mesmo quando passamos períodos mais longos fisicamente separados.
Descobriram também coisas sobre si próprios, coisas boas que não querem perder, mesmo quando acabarem todos os estados de emergência e restrições: o prazer de estarem mais tempo sozinhos e sossegados, a satisfação de projectos a dois, provavelmente pela primeira vez desde que os filhos nasceram, há anos-luz atrás. Não foram só os mais novos que perceberam as vantagens do teletrabalho (felizmente, a maioria dos avós continua a trabalhar), de uma agenda profissional presencial mais leve, da oportunidade de escaparem a compromissos sociais que, na realidade, pesavam mais do que gratificavam e — espera Ana, era aqui que queria chegar — do que podiam fazer ao tempo que lhes sobrou quando deixaram de apoiar na mesma medida os netos. E, atenção, não estou a dizer que o fizessem por exigência dos filhos, se assim fosse era mais fácil, mas por uma exigência interna, um grilo falante que não se cansa de dizer que é pecado ficar sentado num sofá a ver uma série ou a pintar flores à sombra de uma árvore quando os filhos, as noras e os genros estão desesperadamente a tentar conciliar uma vida profissional exigente com a gestão dos miúdos e da casa.
Infelizmente vejo já muitos avós a abrirem mão dessas conquistas, movidos pelas saudades da família, é claro, mas também, suspeito, de um medo profundo e enraizado, mas extremamente corrosivo: o de que é arriscado estabelecer limites. De que se tiverem a coragem de dizer “hoje não”, “esta semana, não”, ou mesmo “a partir de agora só os posso ir buscar uma vez por semana”, os filhos amuem ou se vinguem, privando-os dos netos que tanto adoram, da família que tanto amam. Como se fosse um tudo ou nada.
Temo que com a vacinação crescente dos mais velhos, com o maior número de pais, filhos e netos que já tiveram covid (eu sei que não é 100% seguro, mas mal será que os anticorpos não permitam que pelo menos o núcleo mais próximo volte a estar junto), e com o cansaço geral que a pandemia já causa, os avós caminhem a passos largos para um futuro que, no íntimo, não desejam. Sinceramente, acho que deviam traçar os seus limites, antes da birra que, como sabemos, nem sempre acaba bem.
Do teu lado de mãe, como vês isto tudo? Conselhos e estratégias para nos safarmos disto, sem amuos nem guerras?
Querida Mãe,
Não é engraçado que a maioria de nós passe a vida a aprender a colocar limites? Não me parece que seja algo exclusivo aos avós — embora perceba que possam ter medo de perder o papel que têm na vida dos filhos e dos netos —, porque é tão recorrente ouvirmos aconselhar a necessidade de aprendermos a colocar os nossos limites. Há workshops, palestras, cursos inteiros sobre isto!
O mundo parece dividir-se entre os que impõe a sua vontade e os que não conseguem dizer que não. E é aqui que surge a grande questão: de quem é a culpa: daqueles que impõem, por não terem adivinhado o que o outro precisava? Ou dos que não são capazes de defender o seu território, ou deixarem claro aquilo que querem/precisam?
Entre avós e filhos esta dinâmica ainda se complica mais. Os filhos vivem desde o início dos tempos a exigir aos pais, sem pensarem muito sobre as suas necessidades — fazemo-lo de uma forma tão natural que já nem reparamos. Quantos de nós chegamos a casa dos nossos pais e sentimo-nos a regredir para a infância. Custa-nos pensar neles como adultos como nós, que têm contas para pagar, cansaços, irritações, e que aquela casa (que insistem em lembrar-nos que é nossa!) é, apesar de tudo, deles. Que o facto de lá estarmos, por mais que nos adorem, transtorna as suas rotinas e que se já em pequenos podia ser difícil conviver com o nosso feitio, agora que nos colocamos de igual para igual, pode ser ainda mais desgastante. Até porque já não nos podem mandar para o quarto, ou proibir-nos de sair à noite.
Mas a mãe tem razão quando diz que os avós também não facilitam este equilíbrio de vontades, porque juram-nos constantemente que aquilo que querem mais do que tudo é que vamos para lá, que demos vida à casa, que não se importam nada com os nossos filhos barulhentos! Não mentem, mas da mesma forma que adoramos os nossos filhos mais do que tudo, mas não deixamos por isso de desejar que cheguem as nove da noite e adormeçam, também vocês nos adoram de morte, mas também sonham com o momento em que podem recuperar o sossego.
Como gerir tudo isto? Principalmente quando tantos avós/pais precisam mesmo de ajudar os seus filhos adultos — muitos já não precisavam de ajuda mas depois desta crise precisam outra vez —, quer seja com dinheiro, tempo, ou mesmo com um tecto.
A mãe pergunta-me como não deixar esta birra explodir, causando danos irreparáveis? Parece-me que a única forma é falando muito, pondo as cartas na mesa, sem esconder nada na manga, inclusivamente de nós mesmos. Aceitar a contradição de nos adorarmos uns aos outros, mas termos direito a vidas independentes, ao nosso espaço, ao tempo para o descanso e para os nossos projectos.
E quer que lhe diga mais alguma coisa? Sinceramente, também não faz mal nenhum fazer um bocadinho de “cerimónia”. Aquela cerimónia que usamos com os nossos sogros, depositada nos nossos pais é capaz de ajudar muito!
Beijinhos
No Birras de Mãe, uma avó/ mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, vão diariamente escrever-se, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. Na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. Facebook e Instagram.