O crime paga imposto?
Ao contrário do que agora se decidiu na Operação Marquês, os contribuintes honestos podem dormir descansados: ao dano que lhes exaure os bolsos não se soma a injúria de uma isenção fiscal para os criminosos.
Na decisão de 6728 páginas que encerrou a instrução na Operação Marquês, houve um ponto que me provocou perplexidade. Não foram as críticas acerbas, nem tão-pouco os termos a que ficou reduzida a “espetacular” imputação, porque os processos judiciais são lugares de dissenso e divergência e a finalidade da instrução é essa mesma: controlar o bem fundado da acusação. O que me espantou, pela sua singularidade, foi um argumento: aquele em que assenta a decisão de não levar a julgamento os crimes de fraude fiscal.
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Na decisão de 6728 páginas que encerrou a instrução na Operação Marquês, houve um ponto que me provocou perplexidade. Não foram as críticas acerbas, nem tão-pouco os termos a que ficou reduzida a “espetacular” imputação, porque os processos judiciais são lugares de dissenso e divergência e a finalidade da instrução é essa mesma: controlar o bem fundado da acusação. O que me espantou, pela sua singularidade, foi um argumento: aquele em que assenta a decisão de não levar a julgamento os crimes de fraude fiscal.
Para que haja matéria criminal, diz Ivo Rosa, não basta que os rendimentos ilícitos – criminosos ou não – possam ser tributados. É também preciso que o titular das rendas ilegais esteja obrigado a declará-las ao Fisco e que esse dever prima facie de declarar – a existir – não tenha de recuar perante um particular direito, condensado numa célebre fórmula latina: nemo tenetur se ipsum accusare.
Falar desta tese e das suas implicações não significa sustentar que a decisão devesse ter sido diferente ou que venha a sê-lo na Relação. Outras razões, de facto e de direito, poderão ditar o mesmo desfecho. Poderá ficar por provar que os arguidos eram os titulares dos rendimentos. Ou pode haver elementos nos autos que evidenciem ter já havido tributação daqueles rendimentos – por exemplo, em algum dos RERT. Sob o raciocínio usado pelo juiz de instrução e para além dele há uma realidade de factos e de provas que as centenas de volumes do processo escondem aos que lhe são estranhos.
Mas voltemos ao argumento.
Ivo Rosa não ignorou o chamado princípio da “neutralidade axiológica” dos impostos a que se refere o artigo 10.º da LGT. Ao Fisco interessa apenas a capacidade de cada um para contribuir nos gastos comuns. Não lhe importa a “cor” do dinheiro, se a sua fonte é um ato moral ou imoral, um facto lícito ou ilícito – até mesmo os rendimentos de crimes estão sujeitos à incidência de impostos. Os contribuintes honestos podem dormir descansados: ao dano que lhes exaure os bolsos não se soma a injúria de uma isenção fiscal para os criminosos.
A circunstância de o Estado poder legitimamente cobrar impostos pelas receitas de um crime não significa, ipso facto, que o titular desses rendimentos esteja obrigado a declará-los. E não existindo esse dever não pode falar-se de crime de fraude fiscal. Isto porque não existe uma equação linear entre a fraude fiscal e o não pagamento de impostos devidos. O preenchimento do tipo legal exige, simultaneamente, menos e mais. Menos porque não é necessário que se produza um efetivo dano ou prejuízo patrimonial (o crime é de perigo). Mais porque se reclama um momento de falsidade na relação com o Estado: comete fraude fiscal quem “mente” nas declarações, ocultando ou deturpando dados, com a intenção de não pagar impostos.
É aqui que entra o primeiro pormenor intrigante da argumentação: esse dever declarativo não existiria estando em causa rendimentos de crimes porque eles não integram nenhuma das categorias a que se refere o artigo 1.º do Código do IRS. Não haveria lugar na declaração de impostos onde pôr a cruzinha, disse numa entrevista o advogado Pedro Delille, expondo o argumento ao absurdo da caricatura.
Seja como for – e este é o ponto que interessa –, o eventual dever de declarar rendimentos de origem criminosa esbarraria no direito à não autoincriminação, o tal nemo tenetur se ipsum accusare. Acrescentar 34 milhões de euros a uma declaração de impostos acionaria certamente as campainhas do sistema fiscal – e da justiça penal por arrastamento. Estará então o contribuinte que cometeu crimes dispensado do dever de declarar os correspondentes rendimentos?
A resposta que se tem dado a esta pergunta – no Tribunal Constitucional, no TEDH, na doutrina portuguesa e da estrangeira – é negativa. A prerrogativa contra a autoincriminação corresponde a um direito do arguido na relação com o Estado que o pune. Tem lugar exclusivo no processo penal e nos demais processos sancionatórios. A simples imposição de deveres de colaboração com a Administração Fiscal não atinge, por isso, o nemo tenetur se ipsum accusare. O conflito nasce “portas adentro” do processo penal ou contraordenacional, no momento de decidir se as informações dadas em cumprimento desses deveres podem ser valoradas como prova. E não podem. Para preservar o direito à não autoincriminação, há uma proibição de valoração.
Quer isto dizer que o direito à não autoincriminação não legitima a apresentação de declarações fiscais falsas ou incompletas, de que não constem todos os rendimentos auferidos. Numa palavra, não justifica a prática de crimes de fraude fiscal, seja por ação, seja por omissão.
E, já agora, não justifica a prática de quaisquer novos ilícitos criminais. É certo que a ameaça de punição gera um “impulso natural de autopreservação” que o legislador pode ou não considerar no momento de decidir sobre a relevância penal de certas condutas de encobrimento. Por exemplo, não se pune ou pune-se menos severamente o falso testemunho e o favorecimento pessoal se o agente quiser evitar a sua exposição a um perigo de responsabilização criminal. Mas nem todas as condutas destinadas a evitar a autoincriminação merecem um tratamento privilegiado ou mais benevolente. Há até casos em que a intenção de ocultar um crime justifica uma punição agravada ou mais severa – veja-se a situação emblemática do arguido que mata uma testemunha ocular para evitar o seu depoimento; o Código Penal tipifica-a como homicídio qualificado (mais severamente punido do que o homicídio simples). E outros casos existem em que é o próprio perigo criado pela conduta criminosa do agente que faz com que a sua inação posterior seja crime – pense-se naquele que incendeia um barracão e nada faz para evitar a morte de alguém que lá se encontrava.
Resulta claro destes exemplos que condutas de encobrimento não puníveis são apenas as que se destinem a embaraçar ou impedir a realização da justiça penal. Não já as que ofendam outros fins ou outros interesses públicos ou privados – como a justa repartição dos rendimentos e da riqueza que preside ao sistema fiscal. Nestes casos, pode bem dizer-se que o crime não compensa – e ainda paga impostos.
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico