Um vizinho, um amigo
Se há coisas que aprendemos nestes meses de pandemia é que podemos sofrer todos do mesmo. Não sou só eu, nem só ele, somos todos nós. Estamos todos nisto, a sentir estas coisas estranhas e confusas. Aprendemos também que podemos querer todos o mesmo.
As manhãs começam vagarosas com o chilrear dos pássaros, as persianas a serem corridas com firmeza, os tapetes batidos nas varandas mais usadas do que nunca e os cafés sorvidos pela casa. Mais um dia que começa no bairro e eu saio para a rua, cão pela trela, com aquela sensação de que já conheço o guião de cor. A velhota que pergunta se é menino ou menina, o homem do café da esquina que os serve às escondidas, os estúdios de arte vazios de gente a dormitar em casa.
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As manhãs começam vagarosas com o chilrear dos pássaros, as persianas a serem corridas com firmeza, os tapetes batidos nas varandas mais usadas do que nunca e os cafés sorvidos pela casa. Mais um dia que começa no bairro e eu saio para a rua, cão pela trela, com aquela sensação de que já conheço o guião de cor. A velhota que pergunta se é menino ou menina, o homem do café da esquina que os serve às escondidas, os estúdios de arte vazios de gente a dormitar em casa.
Atravesso as ruas, olho à volta, às vezes nem muito. Há muito que a novidade se esbateu entre murais bonitos e lojas fechadas à espera de melhores dias. A máscara não ajuda e, já que estou meia escondida, aproveito e escondo a outra metade com o chapéu. A verdade é que me desabituei de ser sociável. O que não quero mesmo que me escape é o cocó do cão. Esse, sim, não pode ficar impune numa Lisboa marcada pela pandemia. Tudo o resto parece-me secundário.
A velhota que vive sozinha, o café que foi assaltado duas vezes na mesma semana, esta ou outra flor que acordou com a Primavera. Mas não. O secundário é primário. Eu é que fui deixando de ter capacidade para o que quer que saia do (novo) normal, do seguro, o que quer que obrigue a sair do casulo.
Há uns meses, quando escrevi esta crónica sobre o cansaço que sentimos ao viver o mesmo dia over and over again, não pensava em voltar a escrever algo parecido. Não gosto de parecido, de morninho, de assim-assim. Gosto de novo, fresco, exciting, sabem, como as cores da Primavera e o sol do Verão. Mas aqui estou eu, mais uma vez a partilhar o que me vai na alma.
No outro dia, nem sei bem como mas talvez por já se poder beber café na rua de novo, saí de casa e dei por mim a reparar nas coisas de novo. Reparei no meu vizinho que estava, como sempre, sentado com a sua Nina no muro onde dantes era uma esplanada. Dantes, em tempos de vida, sentava-se ali calmamente com o seu computador portátil e cadernos inteligentes, daqueles que se poisam em sítios bonitos ao lado de livros cultos e canetas brilhantes.
Ali, todos os dias, acenava amistosamente e usava a Nina como barómetro para o dia: se estava calma e receptiva, ia ser bom; se agitada e refilona, bem sabem, complicado. Era como que uma preparação para o que vinha a seguir. Até que lhe tiraram isto, nos tiraram isto. Ficamos com o muro e os bancos da esplanada vazios, cruzados por fitas da polícia, tirando-nos não apenas o café mas a vida de bairro.
Como dizia, hoje parei para falar com o meu vizinho que, tal como eu, vive sozinho com o cão. Ele olhou para mim e eu parei, distante. Falou da ansiedade que sentia ao ter que dizer olá às mesmas pessoas todos os dias, da claustrofobia que surgia nas esquinas repetidas, de quanto sentia falta do mar. Falou ainda do brioche da padaria da rua de baixo e de quanto tinha engordado porque só comia. Tu também?
Perguntou se eu não sentia o mesmo, se não estava farta, se não tinha engordado. Não respondi logo. Primeiro ouvi, sorri, e lá partilhei que sim, que sentia exactamente o mesmo. Exactamente o mesmo. Apesar do meu pão favorito ser o de centeio e não o brioche, também sinto falta do mar, tenho ansiedade e claustrofobia num bairro que amo e pus uns quilos a mais que às vezes parecem menos e outras ainda não são nem uma coisa nem outra.
Se há coisas que aprendemos nestes meses de pandemia é que podemos sofrer todos do mesmo. Não sou só eu, nem só ele, somos todos nós. Estamos todos nisto, a sentir estas coisas estranhas e confusas. Aprendemos também que podemos querer todos o mesmo. Mais abraços, mais sorrisos, mais amor, mais calor. Mais coisas boas. Coisas boas que nos façam sentir mais normais, mais iguais, mais humanos, mais vivos.
Hoje pára e fala com o teu vizinho ou vizinha. E ouve. São apenas dois minutos e podes fazer o dia a alguém. Já esse alguém vai, certamente, fazer o teu.
#umvizinhoumamigo