Há mais valor para além do imposto do selo
Haja ou não haja crime no caso das barragens da EDP, em Portugal energia só se discute a posteriori. Estranha forma de vida.
Parlamento, comunicação social e Autoridade Tributária investigam com afinco o caso do não pagamento de imposto do selo na venda de um portefólio de seis centrais hídricas na bacia hidrográfica do rio Douro. O anúncio da conclusão desta transacção ocorreu no dia 17 de Dezembro de 2020, tendo o anúncio da transacção sido feito em 19 de Dezembro de 2019. Mais uma vez, os detectives chegaram tarde ao assunto; haja ou não haja crime, em Portugal energia só se discute a posteriori. Estranha forma de vida: “Se não sabes onde vais/ Porque teimas em correr?”
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Parlamento, comunicação social e Autoridade Tributária investigam com afinco o caso do não pagamento de imposto do selo na venda de um portefólio de seis centrais hídricas na bacia hidrográfica do rio Douro. O anúncio da conclusão desta transacção ocorreu no dia 17 de Dezembro de 2020, tendo o anúncio da transacção sido feito em 19 de Dezembro de 2019. Mais uma vez, os detectives chegaram tarde ao assunto; haja ou não haja crime, em Portugal energia só se discute a posteriori. Estranha forma de vida: “Se não sabes onde vais/ Porque teimas em correr?”
Claro que os impostos são o volante por excelência da condução política (em alemão, Steuer significa imposto, mas também volante). E, com excepção de Sloterdijk, ninguém parece acreditar hoje no axioma de Proudhon, enunciado na sua Théorie de l’impôt (1861), segundo o qual a perequação das fortunas “não depende da iniciativa do Estado, mas unicamente da inteligência e da vontade dos cidadãos que consentem o imposto”. Portanto, em tempos de cinematização da política e de pandemia, nada mais apropriado que revisitar o selo, sobretudo o sétimo.
Esta preocupação rigorosa com a receita fiscal, laudabilíssima como princípio geral, não deve, contudo, fazer esquecer aquele antigo aforismo presidencial, de sabor apocalíptico, segundo o qual “há mais vida para além do Orçamento”. Neste caso, é apropriado reconhecer que há mais valor para além do imposto do selo. Um valor incalculado; até mesmo incalculável, dirão alguns, ressoando aqueles guias de museu de província de outros tempos quando se referiam à jóia da colecção local.
O pequeno portefólio de seis centrais agora alienado é composto por três centrais de fio de água, no Douro internacional, e três centrais de albufeira com bombagem. As primeiras turbinam a água que passa, que é como quem diz, o caudal do Douro que lá chega, depois de atravessar as albufeiras a montante, em Espanha. Entre estas conta-se Aldeadávila, uma das maiores centrais hidroeléctricas com bombagem da Europa. Quando entrou em serviço, e durante muitos anos, foi mesmo a maior da Europa. Um monumento à engenharia espanhola, mas também à sua diplomacia, que nos anos 1950 persuadiu o governo português a aceitar o troço menos produtivo do Douro internacional – aquele onde se instalaram as três centrais. Nada que pudesse afectar o bom relacionamento entre os líderes dos dois países: em 17 de Outubro de 1964, Franco e Salazar testemunham juntos a inauguração oficial da central. Pequeno detalhe histórico: o “Convénio entre Portugal e Espanha para regular o aproveitamento hidroeléctrico dos troços internacionais do rio Douro e dos seus afluentes” foi aprovado e publicado em Diário do Governo de 23 de Outubro de 1964. A posteriori...
Quando, em Setembro de 1864, “Sua Magestade A Rainha das Hespanhas e Sua Magestade El Rei de Portugal e dos Algarves, tomando em consideração o estado de desassocego em que se encontram muitos povos situados nos confins de ambos os Reinos por não existir uma demarcação bem defïnida do territorio”, celebraram o Tratado de Limites, estipularam, no Anexo I, “Regulamento relativo aos rios limitrophes entre ambas as nações”, que “não será licito construir nos ditos rios, nem nas suas margens ou nas de suas ilhas, obras de nenhum genero que prejudiquen à navegação ou alterem o curso das aguas ou por cualquer modo damnifïquem as condições d'esses rios para o uso commum e publico.” Exactamente um século mais tarde, alterou-se o curso da história eléctrica, sem estados de “desassocego”.
Em 2001, os governos de Portugal e de Espanha decidiram alterar, mais uma vez, o curso da história, dando início à construção do mercado ibérico de electricidade (Mibel). Conjuntamente, solicitaram às entidades reguladoras dos dois países que apresentassem um “Modelo de Organização do Mercado Ibérico de Electricidade”. O documento, após consulta pública conjunta nos dois países (provavelmente, um exemplo único de cooperação institucional ibérica), foi submetido em Março de 2002 e terminava com um conjunto de questões à atenção dos decisores políticos, nomeadamente esta:
“A existência de aproveitamentos hidroeléctricos de diferentes proprietários em cascata, isto é, utilizando no todo ou em parte o mesmo fluxo hídrico para a produção de energia eléctrica, coloca algumas dificuldades à operação eficiente do mercado e do próprio sistema eléctrico. Seria útil que os procedimentos de utilização dos recursos hídricos fossem explicitados pelas Administrações de Espanha e Portugal, desejavelmente com base em propostas elaboradas pelas empresas proprietárias de centrais hidroeléctricas mas tendo também em conta objectivos de política ambiental e de política de gestão da água, por forma a tornar perfeitamente transparente e não discriminatória a gestão da produção de energia hidroeléctrica.”
Obviamente, os procedimentos não foram explicitados. Quanto vale o poder de mercado das centrais a montante do trio agora alienado? Por favor, não perguntem. Seguramente, ele foi descontado no preço pago pelo adquirente. Sejamos discretos, esqueçamos que há outros rios internacionais geridos com o mesmo rigor procedimental.
Depois, temos as três centrais de albufeira com bombagem, incluindo a famigerada Foz Tua que acabou por só estar a funcionar dois anos na carteira do primeiro proprietário, apesar de ter recebido, em 2006, o selo de “Elevado Potencial Hidroeléctrico” outorgado por um governo profundo conhecedor do potencial hidroeléctrico do país, nas múltiplas acepções do conceito físico, político, financeiro e económico de potencial.
Num sistema eléctrico crescentemente dominado por centrais intermitentes (eólicas e solares), o armazenamento que estas centrais com bombagem proporcionam tem um valor crescente. Quanto vale essa capacidade de armazenamento para o sistema? Por favor, não perguntem. O dono das centrais é livre de bombar e turbinar a água quando muito bem entende, optimizando a operação do seu portefólio. Se a sua estratégia puser em risco a segurança de abastecimento do país ou fizer subir os preços da electricidade no mercado lá teremos mais uma investigação a posteriori para explicar o que aconteceu. No fundo, não seria a primeira vez que um episódio do género acontecia na Europa – até os suíços cometeram o erro de acreditar que agentes privados se preocupam com a segurança de abastecimento enquanto bem público.
O armazenamento de energia é um bem privado, certo? A água será um bem público, mas os contratos de concessão devem ter salvaguardado o interesse público, não é? Ninguém duvida que Portugal é o país mais transparente e mais eficaz na gestão de contratos de concessão, assim como ninguém duvida que o produtor vai pagar IRC e todos os tributos aplicáveis, sem subterfúgios. Por favor, não peçam para definir regras claras a priori, isso é contra os nossos princípios: tanto a posteriori quanto possível, tanto a priori quanto necessário. Além do mais, essas regras ex ante deveriam ser negociadas com Espanha, no âmbito do Mibel, o que sabidamente é muito complexo, sobretudo com governos da mesma cor política.
Vai correr tudo bem. Se não correr, há muitos candidatos com elevado potencial de culpabilidade: Autoridade da Concorrência, Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos, Entidade Nacional para o Sector Energético E.P.E., Direcção Geral de Energia e Geologia, etc... O legislador, esse, já cumpriu impecavelmente a sua missão, em 1864, quando estabeleceu que “a fim de manter e conservar o bom estado dos rios verifïcar-se-ha annualmente un reconhocimento dos mesmos rios conformemente à disposição geral contida no artigo XXV de Tratado de limites. Em consequência todos os annos pelo mez de agosto, os Alcaides hespanhoes e los Administradores de Concelho portuguezez, acompanhados de delegados municipaes ad hoc, examinarão a secção fluvial raianha na estensão correspondente à sua circumscripção jurisdiccional”. Infelizmente, consta que se perdeu no arquivo do Instituto Diplomático a análise de impacto regulatório subjacente a esta peça legislativa de incomparável valor antropológico e etnográfico. O legislador ou a legisladora de hoje não conseguiriam fazer melhor; excepto, talvez, acrescentar, a seguir a “bom estado”, “e a resiliência”.