A luta
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“Os jovens da nossa comunidade agora já não querem envolver-se no trabalho, e especialmente na defesa do território, porque todos estão com medo e se não mostram medo, a família começa a afastar-se.” César Benedith, líder indígena garífuna das Honduras
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“Os jovens da nossa comunidade agora já não querem envolver-se no trabalho, e especialmente na defesa do território, porque todos estão com medo e se não mostram medo, a família começa a afastar-se.” César Benedith, líder indígena garífuna das Honduras
O rei do porno contra os índios
Os garífunas das Honduras sofrem da mesma sorte de muitos indígenas desse mundo fora, vivem em harmonia com a natureza em terras com demasiados recursos para não suscitarem a cobiça dos capitalistas. Sem a protecção do Estado, que se junta por dez reis de mel coado ao lado mais ganancioso, os indígenas vêem desaparecer os seus direitos para investidores/ocupantes que os expulsam e exploram as suas terras. E o seu único recurso é lutar – organizar-se, resistir. Um dos maiores exploradores das terras dos garífunas das Honduras (um povo que é uma miscigenação de caraíbas e aruaques com escravos africanos) é Randy Jorgensen, milionário que fez fortuna no cinema pornográfico e a quem costumam chamar “o rei canadiano do porno”, grande amigo de Ramón Lobo, irmão de Porfirio Lobo que foi Presidente das Honduras entre 2010 e 2014. Ele e outros construíram complexos turísticos em terras indígenas sem que os garífunas fossem tidos nem achados e quando estes procuraram fazer-se valer dos seus títulos de propriedade a Justiça rejeitou-os. Cansados de serem o elo mais fraco, os indígenas juntaram-se para tentar travar a exploração com as próprias mãos – uma tarefa que os deixa sujeitos aos perigos de morte, de prisão ou de desaparecimento. O que, por sua vez, leva ao medo e ao afastamento dos mais jovens da luta que ainda é mantida pelos mais velhos. “Às vezes passa-me pela cabeça deixar esta comunidade e procurar asilo político noutros países, mas penso que se for para longe, ficar-me-á sempre atravessada a ideia de ver uma comunidade de braços caídos, a deixar que nos tirem a nossa terra só por medo”, diz César Benedith.
Baby Jane agradece
Baby Jane morreu triste. Da dor da doença, também. Sobretudo da impotência de não lhe ter sido feita justiça. O processo por discriminação irá continuar, que há quem queira levar as coisas até ao fim, que há quem queira encontrar esse cidadão de Hong Kong que tinha uma empregada de limpeza filipina que despediu quando soube que ela sofria de cancro cervical. Baby Jane tinha 40 anos, cinco filhos menores de pai ausente, um cancro em remissão e uma infecção num rim que acabou por provocar as complicações que a levaram à morte. O calvário das mulheres-a-dias filipinas por esse mundo fora está repleto de histórias de exploração, maus tratos, discriminação, que se somam à vida difícil de crescer longe dos filhos a cuidar das famílias dos outros como cidadãs de segunda. Mas ao contrário do silêncio de muitas, Baby Jane resolveu lutar contra esse patrão de Hong Kong que a mandou para a rua em 2019 no dia em que lhe descobriu esse cancro. Diz o South China Morning Post, citando Mary Ann Allas, a irmã, que Baby Jane deixou agradecimentos a todos que a ajudaram nestes quase dois anos de luta. Uma delas é Jessica Cutrera, a patroa de Mary Ann Allas, que angariou mais de 920 mil dólares de Hong Kong (100 mil euros) para custear os tratamentos de Baby Jane. Será Jessica Cutrera a prosseguir com o processo por discriminação em nome da família. “Ela estava desapontada com o caso e estava stressada. Sentia-se triste porque não se conseguiu encontrar o patrão. Neste último mês senti que ela tinha perdido a esperança”, conclui a irmã.
Átila, o uno
Quando a ditadura militar brasileira aceitou a transição para a democracia, não se esqueceu de negociar uma lei de amnistia que manteve a salvo no país libertado os algozes do estado de excepção. Ninguém foi condenado por esses crimes contra a humanidade que hoje Jair Bolsonaro tanto gosta de exultar. Nunca nos cansamos de estranhar que esses valorosos e corajosos defensores das nações, cheios de dever patriótico e pinta de salvadores da pátria, arranjem sempre maneira de só devolver a liberdade à sociedade em troca das suas fichas limpas. Mas se os tribunais brasileiros estão de mãos atadas, isso não quer dizer que em outras latitudes não se julguem esses crimes. E Átila Rohrsetzer pode mesmo vir a ser o primeiro brasileiro condenado por um crime cometido durante a ditadura, pela morte de Lorenzo Viñas Gigli, um italo-argentino que fugiu da perseguição na Argentina e foi apanhado pela polícia brasileira e recambiado ao abrigo da Operação Condor, a colaboração entre as ditaduras do Cone Sul da América. Rohrsetzer, hoje um velho reformado a viver no litoral de Santa Catarina, está a ser julgado à revelia em Itália. O director da Divisão Central de Informações do Rio Grande do Sul na altura dos factos, Junho de 1980, está a ser julgado por sequestro, tortura, homicídio e ocultação de cadáver. Em 2005, o Estado brasileiro reconheceu a sua responsabilidade na prisão e tortura de Viñas Gigli. Agora cabe ao tribunal italiano julgar um culpado. A justiça tem, muitas vezes, de lutar para ser aplicada e embora seja quase certo que Átila nunca conhecerá a prisão, e seja apenas uno numa multiplicidade de crimes, pode estabelecer um precedente. E quem sabe, não ser só uno, mas o primeiro.
A guerra do pacífico
Até agora, a resistência ao golpe militar na Birmânia tem sido feita de forma pacífica. Os manifestantes emprestam o seu corpo e os militares atiram a matar, ou batem, ou prendem. O único que não fazem é ouvir a voz das ruas que, dois meses depois do golpe de 1 de Fevereiro, continua a enfrentar a repressão cada vez mais dura da Junta que tomou o poder. No entanto, a resistência pacífica, ao não conquistar terreno, começa a ser questionada. Soe Naing Win, pseudónimo de um dos líderes do protesto em Rangun, sente mais nesta altura as dores desse dilema na cabeça que a brutalidade dos soldados no corpo. Soe Naing Win cresceu num bairro pobre de Rangun, estudou num mosteiro budista, aprendeu inglês e fazia a ligação com os estrangeiros que pretendiam meditar no mosteiro. Apoia o partido de Aung San Suu Kyi que venceu com maioria absoluta as eleições cujos resultados os militares rejeitam. Em lágrimas, explica a David Corn da revista Mother Jones que a violência brutal que vem testemunhando levou-o a desistir do protesto pacífico e chegar à conclusão que a única forma de defender a democracia na Birmânia passa por pegar em armas. “Era tanta a violência que a maioria dos jovens, eu incluído, começou a pensar que a não-violência não é a resposta. Começámos a pensar nisso. Há vezes em que me odeio por isso. Não quero matar soldados ou polícias. Estão a forçar-nos a fazer isso.” Pensavam que o peso das ruas levasse a ONU, os Estados Unidos, países vizinhos asiáticos a forçar a Junta a arrepiar caminho e a devolver a democracia aos birmaneses, mas a esta altura já estão resignados a não ter esse apoio: “Agora percebemos que, pela nossa democracia e pelo nosso país, temos de lutar sozinhos.”