A minha opção pela frugalidade noticiosa
Utilizar como argumento para os malefícios do ensino não-presencial as desigualdades sociais é uma falácia, porque as desigualdades estavam lá, quotidianamente, muito antes da pandemia.
Neste último ano, com a progressão da pandemia, dei comigo a consumir cada vez menos informação noticiosa. De início, em Março do ano passado, fi-lo numa reacção puramente instintiva de autopreservação: confundiam-se factos e boatos, contradiziam-se versões e evidências, baralhavam-se números e vidas, agitavam-se medos.
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Neste último ano, com a progressão da pandemia, dei comigo a consumir cada vez menos informação noticiosa. De início, em Março do ano passado, fi-lo numa reacção puramente instintiva de autopreservação: confundiam-se factos e boatos, contradiziam-se versões e evidências, baralhavam-se números e vidas, agitavam-se medos.
Depois, superado esse tempo de choque e na progressiva adaptação a uns tempos que, já por aqui o escrevi, são os de um novo “anormal”, continuei nessa espécie de dieta informativa a que, voluntária e conscientemente, aderi.
E continuei nesta atitude de frugalidade por duas razões: a primeira, pela generalizada e despudorada hipocrisia dos discursos. A segunda pela aterradora bipolarização que já ameaçava vir a tomar conta dos tempos e que encontrou, na fragilidade pandémica, terreno fértil para se expandir.
Quanto à hipocrisia dos discursos, basta-me, como exemplo, ainda que não faltem muitos outros, a questão da escola e os terríveis perigos de desigualdade causados pelo ensino não presencial. Como se em todos estes anos de ensino presencial (estatisticamente exemplar) a escola tivesse funcionado, no geral, como motor de ascensão social no nosso país.
Porque a verdade é que não funcionou – não no sentido do aumento de escolarização da população, mas no sentido daquilo em que esse aumento de escolarização se traduziu em aquisição de competências realmente capazes de promover a mobilidade e as oportunidades sociais que neutralizariam as desvantagens (socioeconómicas, culturais, étnicas, regionais e locais) à partida.
E, para além dos diversos estudos que provam a correlação entre as origens social e familiar e o sucesso escolar, prova-o a realidade do quotidiano, nas escolas (nessa espécie de pacto de indiferença mútua com os alunos “das filas de trás”), no emprego (com um verdadeiro exército de jovens com habilitações escolares elevadas a desempenharem funções não-qualificadas ou pouco-qualificadas) e na sociedade (com a reprodução e mimetização, adaptadas aos tempos, é certo, dos modos de vida das gerações precedentes: igualmente precários e frágeis).
Utilizar como argumento para os malefícios do ensino não-presencial as desigualdades sociais é uma falácia, porque as desigualdades estavam lá, quotidianamente, muito antes da pandemia: as desigualdades dos alunos que percorrem quilómetros para chegar à escola, ou as desigualdades dos alunos para quem a escola não “fala”, porque as suas referências culturais e até linguísticas são outras. Essas desigualdades estiveram lá todas, nestes quase 47 anos de democracia.
Como estava, e tem estado, a falta de condições da maioria das famílias para conciliar o trabalho e a família, que contribuiu para atribuir à instituição escola uma função que não lhe pode nem deve caber: a de ser um “depósito de crianças” durante o maior número de horas possível.
Além da hipocrisia dos discursos, em que me afecta, de modo particular, a realidade portuguesa, o ambiente de bipolarização e de conflitualidade, crescentemente estrutural e com manifestações globais, tem sido o segundo factor determinante da minha opção de limitar o consumo de informação noticiosa.
É que a pandemia só veio exacerbar, exaltar e pôr a nu uma tendência que, subliminarmente, vinha já a instalar-se nas sociedades e nas vidas. Uma tendência de bipolarização que insiste em que nos encaixemos em categorias estanques, forçadas e artificiais (ao mesmo tempo que, no mais absoluto paradoxo, predica os perigos da categorização, da estereotipagem e da inevitável discriminação, que tais processos implicam), insistência à qual nos submetemos com uma docilidade amestrada.
Um tipo de categorização e de rotulagem, amplificado pelas redes sociais e pelos meios de comunicação social – que, crescentemente, parecem estar a acolher os vícios das primeiras, no que ao imediatismo julgador e reactivo diz respeito –, que em nada pressupõe ou favorece as tomadas de posição reflectidas, conscientes e ponderadas, mas antes apela às mais absurdas e histéricas gritarias, exuberantes na forma, mas totalmente destituídas de conteúdo (atestada, aliás, pela facilidade com que estas “lutas”, “movimentos” e “afins”, se trucidam mutuamente, no canibalismo guloso de um tempo de antena).
Aproveitando essa docilidade amestrada (ou anestesiada?), de que vamos padecendo, obrigam-nos a escolher trincheiras, como se todos devêssemos viver numa guerra permanente ou, então, não viver de todo. Uma guerra de sexos, de culturas, de idades, de etnias, de religiões…
Uma guerra em que todos deveremos assumir uma de duas identidades: a de vítima ou a de verdugo. E assumi-la porque sim. Não por nós, pela nossa história pessoal, ou pela nossa individualidade, mas pela “categoria” a que pertencemos, ou melhor, pelos atributos essencialistas e deterministas com que se rotula essa categoria.
Esquecemo-nos que este tipo de definição, essencialista e determinista, é exactamente do mesmo tipo daqueles que provocaram as maiores segregações, discriminações, purgas e genocídios da história da humanidade. E também esses se instalaram assim: lenta e subliminarmente, até tomarem conta de tudo.
E esquecemo-nos, sobretudo, que muitas destas categorizações, supostamente fundadas na liberdade e nos direitos humanos são, na prática, a sua negação, porque mais não pretendem do que coarctar a individualidade do outro e negar, dessa forma, a sua humanidade.