Estamos a aprender a viver em submissão?
Como poderei catalogar uma sociedade que, há um ano, aceita sem vigoroso protesto o desumano encerramento dos seus velhos em lares, donde não são autorizados a sair mesmo depois de vacinados?
1. Compreendo bem que, para o vice-almirante Gouveia e Melo, a vacinação de mais de 60 mil profissionais de Educação no último fim-de-semana seja tema central. Sem lhe retirar importância, compreendo menos bem que o seja também para os responsáveis políticos por um sistema de ensino em estado comatoso. Desnude-se o que temos, em síntese breve: perdas de aprendizagens acumuladas, por diagnosticar com seriedade; muitos traumas emocionais a que acudir; 17 mil alunos, que nem ensino remoto conseguiram; cerca de 80 mil com necessidades educativas especiais e mais de 350 mil apoiados pela Acção Social Escolar, praticamente abandonados; um perfil de aluno a embrulhar um vazio de soluções; um modelo de gestão de escolas autocrático, obediente à voz de um ministério sem prestígio nem força política; uma carreira docente que destrata os que estão e afasta os que queiram vir; um edifício legislativo pérfido, sujeito a trambolhões constantes; uma avaliação das aprendizagens aferida por baixo, pela mediocridade do que se pede, e uma lógica de exames adulterada e esfrangalhada. E os professores, vacinados mas sonâmbulos, suportam um sistema mergulhado nestas desigualdades e injustiças. Submissos, fogem ao confronto, único meio para começar a resolver um dos maiores problemas do nosso estar.
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1. Compreendo bem que, para o vice-almirante Gouveia e Melo, a vacinação de mais de 60 mil profissionais de Educação no último fim-de-semana seja tema central. Sem lhe retirar importância, compreendo menos bem que o seja também para os responsáveis políticos por um sistema de ensino em estado comatoso. Desnude-se o que temos, em síntese breve: perdas de aprendizagens acumuladas, por diagnosticar com seriedade; muitos traumas emocionais a que acudir; 17 mil alunos, que nem ensino remoto conseguiram; cerca de 80 mil com necessidades educativas especiais e mais de 350 mil apoiados pela Acção Social Escolar, praticamente abandonados; um perfil de aluno a embrulhar um vazio de soluções; um modelo de gestão de escolas autocrático, obediente à voz de um ministério sem prestígio nem força política; uma carreira docente que destrata os que estão e afasta os que queiram vir; um edifício legislativo pérfido, sujeito a trambolhões constantes; uma avaliação das aprendizagens aferida por baixo, pela mediocridade do que se pede, e uma lógica de exames adulterada e esfrangalhada. E os professores, vacinados mas sonâmbulos, suportam um sistema mergulhado nestas desigualdades e injustiças. Submissos, fogem ao confronto, único meio para começar a resolver um dos maiores problemas do nosso estar.
2. Em Los Angeles, o Unified School District adoptou uma aplicação informática desenvolvida pela Microsoft, destinada a gerar um código QR diário, necessário para que os alunos possam entrar na sua escola. Assim, todos os dias têm de fazer prova de terem um teste PCR negativo, dentro de datas de validade, para além de responderem, repete-se, diariamente, a perguntas de controlo sanitário. Só depois de cumpridas estas exigências os alunos obtêm um código QR, válido apenas para esse dia, para poderem entrar na escola.
Por cá, a Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa foi a estranha protagonista de uma abusiva tentativa de controlo digital dos movimentos dos alunos, em situação de exame à distância, gravando ruídos, desvios do olhar, actividades do computador e tudo o que se passasse à sua volta, numa miserável intrusão na sua vida privada. Esta ousadia, este repugnante desprezo pela legalidade instituída (por enquanto), vindos da escola onde se formam os que devem zelar pela justiça, arrepiam. Esta enormidade teria consequências, se não estivéssemos a atravessar um período de gravíssima pandemia social, acrescentado à grave pandemia de saúde pública.
Na senda desta normalização do anormal, de mansinho e ainda que com as promessas do “estritamente indispensável”, o decreto do Presidente da República, que renovou o estado de emergência, admite a incursão nos dados pessoais dos cidadãos.
Que mundo é este, que está a ser criado?
Convocámos epidemiologistas, virologistas, geneticistas e especialistas de medicina molecular para combater o vírus. Precisamos agora de nos virar para as ciências sociais, para suster os ódios e as enormidades que o medo e a incerteza estão a potenciar. Com efeito, as condições sociopolíticas e económicas da sociedade portuguesa não foram consideradas na escolha das estratégias de combate à pandemia. Vejo pessoas desesperadas e esgotadas emocionalmente pelas profecias e pelas garantias de especialistas que se contradizem a cada passo. E já começo a ouvir novos argumentos defensores da necessidade de manter perenes as medidas sanitárias, porque, afinal, a vacinação em massa e a imunidade de grupo que originaria, não evitará a continuidade da transmissão infecciosa. Respeitáveis comentadores e articulistas rotulam de negacionistas todos os que recusam a padronização das opiniões ou invocam cientistas tão credenciados como os que têm lugar cativo nas televisões e deles discordam. Só que a discussão crítica de argumentos e visões diferentes não pode ser considerada como reacção patológica, muito menos como fenómeno de deslasse social. A menos que queiramos uma sociedade simplesmente mimética de autocratas e de interesses em disputa.
Como poderei catalogar uma sociedade que, há um ano, aceita sem vigoroso protesto o desumano encerramento dos seus velhos em lares, donde não são autorizados a sair mesmo depois de vacinados? Nada de bom espera uma democracia em que a pegajosa aceitação sem questionamento se tornou virtude.