Museu nacionais: “Crime, disse ela”
Se não fosse humor negro, dir-se-ia serem necessárias carradas de água benta para salvar de incêndio ou inundação, conforme as alturas do ano, colecções guardadas em reserva.
Os mais velhos lembrar-se-ão ainda do que disse certo ministro da ditadura quando colapsou o tecto na estação do Cais do Sodré, com quase meia centena de mortos: “Caiu, mas não devia ter caído” — isto depois de anos de incúria e de censura a quem denunciava a situação. E os mais novos pensarão que autismos tais apenas ocorrem em ditadura. Enganam-se: em democracia eles existem igualmente, como provam os “frescos de época” sobre os museus nacionais portugueses, que o PÚBLICO nos deu por estes dias.
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Os mais velhos lembrar-se-ão ainda do que disse certo ministro da ditadura quando colapsou o tecto na estação do Cais do Sodré, com quase meia centena de mortos: “Caiu, mas não devia ter caído” — isto depois de anos de incúria e de censura a quem denunciava a situação. E os mais novos pensarão que autismos tais apenas ocorrem em ditadura. Enganam-se: em democracia eles existem igualmente, como provam os “frescos de época” sobre os museus nacionais portugueses, que o PÚBLICO nos deu por estes dias.
É inteiramente justo afirmar que “os museus estão à beira do abismo” — muitos o temos dito e redito nos últimos anos. Tudo neles caminha para ou está já decrépito: as instalações, os equipamentos, as pessoas. Até os acervos sentem efeitos de difícil ou impossível retorno. O exemplo dado dos Painéis de S. Vicente é paradigmático: investe-se muito no seu estudo, que dá “boa imagem”; mas depois reza-se para que o Verão seja clemente porque o ar condicionado não funciona devidamente. As partes não visíveis dos museus, essas então, nem com rezas lá vão. Se não fosse humor negro, dir-se-ia serem necessárias carradas de água benta para salvar de incêndio ou inundação, conforme as alturas do ano, colecções guardadas em reserva — ocorrência que no caso dos têxteis, por exemplo, é hoje pior do que um jogo de roleta russa.
Depois há a questão do pessoal, ou melhor, da falta dele. Três conservadores de museus recentemente reformados dizem que partiram sem substituto. Uma diz que ainda conseguiu estar “seis meses” a transmitir saberes a colega mais jovem, acabada de recrutar, mas acrescenta: “Seis meses não chegam para conhecer um acervo que tem milhares de anos, milhares de peças”. Viva o velho, dirão uns, porque essa jovem terá ido para ficar e não pertence a grupos de bolseiros de vida curta nos museus. Morra o velho, dirão outros, porque realmente ver um acervo central do país, fruto da dedicação de gerações sucessivas, ser confiado a quem o não conhece, nem o pode saber interrogar, causa os mais gélidos calafrios.
Os exemplos dados nos retratos do PÚBLICO poderiam ser multiplicados até à exaustão. A carta-aberta ao primeiro-ministro redigida por Raquel Henriques da Silva deveria ser subscrita por todos os directores dos museus nacionais, porque só assim cumpririam a sua obrigação para com as casas que circunstancialmente foram chamados a servir. Calados, temerosos, calculistas, tornam-se a si mesmos e aos seus museus cada vez mais insignificantes. E que fossem relevantes era o que se lhes pedia, porque zanzaras gravitando em volta do poder político, com a boca cheia de “democracia cultural”, “inclusividade”, “polifonia”, “diálogo crítico” ou “bem-estar planetário”, isto sem esquecer “disrupção digital”, bom, mariposas destas já existem bastantes: aos directores, conservadores e demais equipas dos museus importa que respondam pelos acervos que constituem a nossa memória e não se tornem coniventes, nem que somente por omissão, quando alguma fatalidade acontecer e for altura de demandar criminalmente quem, político ou técnico, não denunciou e, quando advertido em tempo, não tomou as medidas requeridas ou não se demitiu.
É talvez este dramatismo e esta responsabilidade cívica e legal que fez com que houvesse até aqui tão poucos concorrentes aos lugares de direcção de museus nacionais (e tudo indica que nos que estão mais atrasados a situação será idêntica ou pior ainda). Isto e o sentimento de que, por mais lantejoulas de que se revistam as fatiotas, aquilo de que realmente os museus precisam, no plano da gestão dos acervos, é de auxiliares técnicos, e, no plano da formação superior, de especialistas nas suas colecções, de conservadores e de conservadores-restauradores — categorias profissionais que quase nada têm a ver com a de “curador” e pouco se recortam na de “museólogo”. Ora, com excepção dos conservadores-restauradores (que possuem hoje formação académica muito melhor do que a de antigamente), a verdade nua e crua é que a universidade tem falhado em toda a linha e hoje ainda mais do que ontem é infelizmente a formação principalmente em exercício de funções que faz os profissionais de museus acima indicados, como fez aqueles de quem o PÚBLICO traçou o retrato.
Mas pergunta-se: estamos mesmo “à beira do abismo”? Bem, quem quiser acreditar naquelas frases que povoam as ditaduras e invadem também as democracias, do tipo “está tudo sob controlo”, tem também aqui matéria de sossego: “A Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC) está a ultimar um levantamento das necessidades de pessoal de todos os seus serviços”. Melhor ainda, a mesma DGPC, depois de algumas semanas em que o movimento associativo desta área foi instigado pelos “então, não dizem nada?”, afirma agora ter “grande expectativa na linha dedicada à Eficiência Energética no Plano de Recuperação e Resiliência”. E sempre há os cinco milhões da raspadinha do património, não esqueçamos. Pena não serem os 110 milhões de imposto de selo das barragens que a EDP não pagou, mas também não se pode querer tudo. Ou seja, “tudo está bem quando acaba bem”: “as autoridades não dormem”.