Polvos têm duas fases de sono — e os cientistas estão mais perto de provar que também sonham
Equipa da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (no Brasil) descobriu que, tal como os humanos, os polvos têm um ciclo de sono mais superficial e outro mais profundo. Os resultados do estudo sugerem que também podem ter um estado semelhante ao sono REM, a fase durante a qual os humanos mais sonham.
Para além da inteligência fora do normal para um cefalópode, os polvos são conhecidos por terem “um sono colorido” porque, enquanto dormem, todo o corpo muda de cor. Mas uma equipa da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), no Brasil, concluiu que há mais para aprender com a hora de repouso destas criaturas marinhas.
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Para além da inteligência fora do normal para um cefalópode, os polvos são conhecidos por terem “um sono colorido” porque, enquanto dormem, todo o corpo muda de cor. Mas uma equipa da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), no Brasil, concluiu que há mais para aprender com a hora de repouso destas criaturas marinhas.
Segundo um estudo publicado esta quinta-feira na revista iScience, o grupo descobriu que essas mudanças de cor são características de dois grandes estados alternados de sono: um estado de “sono activo” e um estado de “sono tranquilo”. Os investigadores dizem que as descobertas podem ser mais uma pista para a teoria de que os polvos têm algo semelhante aos sonhos.
Mas vamos por partes. O sono (dos humanos) não é um processo uniforme e igual ao longo de toda a noite. Desenvolve-se em ciclos que se repetem quatro a seis vezes durante as horas em que dormimos. Durante as diferentes fases do sono, o nosso cérebro emite diferentes sinais eléctricos e cada ciclo do sono divide-se em sono REM (rapid eye movements, ou movimentos oculares rápido) e sono não REM.
É este último que tem a maior duração e que surge primeiro na noite — é constituído por várias partes: as fases de sono superficial e do sono profundo, ou seja, o solo tranquilo. Já o sono REM corresponde à fase mais associada ao sonho em que, como o nome indica, os olhos se movimentam rapidamente. Nesta fase, há paralisia de quase todos os músculos, mas o cérebro fica num estado activo. A nossa respiração acelera e a actividade cerebral é muito semelhante à que apresentamos quando estamos acordados. Ao longo da noite, estes “sonos” vão sendo alternados sucessivamente.
De acordo com o que se sabia até agora, só os mamíferos e as aves tinham dois estados de sono. Mais recentemente, um grupo de cientistas reportou que essas fases foram detectadas em alguns répteis e outros investigadores descobriram que um estado de sono semelhante ao REM foi registado também em chocos, parentes próximos dos polvos, também da classe dos cefalópodes. Mas a equipa de cientistas brasileiros quis saber se podia fazer descobertas semelhantes em polvos.
“Isso levou-nos a perguntar se poderíamos observar dois estados do sono também nos polvos. Os polvos têm um sistema nervoso mais centralizado do que qualquer invertebrado e são conhecidos por terem uma alta capacidade de aprendizagem”, diz a principal autora do estudo, Sidarta Ribeiro, da UFRN.
Entre os cefalópodes, o repouso do Octopus vulgaris (polvo-comum) e do Octopus insularis foram o alvo dos investigadores. Escolhem um local preferido para descansar e, depois, assumem uma postura típica de cabeça baixa e braços enrolados em torno do corpo. Permaneceriam totalmente imóveis se não fosse o encolhimento esporádico e o movimento rápido e aleatório das ventosas. A cor da pele muda para um branco pálido e as pupilas estão quase (ou completamente) fechadas. Também a taxa de ventilação é reduzida.
Para tirar as teimas, foram captadas imagens em vídeo dos polvos no laboratório e observou-se que, durante o “sono tranquilo”, os animais estavam quietos, com a pele pálida e as pupilas oculares contraídas. Durante o “sono activo”, a história foi outra. A cor e a textura da pele mudaram e os polvos mexeram os olhos enquanto retraíam as ventosas e o corpo com contracções musculares. “O que torna tudo mais interessante é que o sono activo ocorreu sobretudo após um longo período de sono tranquilo (geralmente com mais de seis minutos) e teve uma periodicidade característica”, refere a investigadora, citada num comunicado sobre o trabalho. E o ciclo repetia-se uma e outra vez, em intervalos de 30 a 40 minutos.
Para estabelecer se estes estados representavam, de facto, o acto de dormir, o grupo mediu o limiar de excitação (a quantidade mínima de estímulo necessária para gerar um impulso) de quatro polvos-comuns usando testes de estimulação visual e táctil. Em ambos os estados de sono, os polvos precisaram de um estímulo forte para desencadear uma resposta comportamental em comparação com uma altura em que estivessem em estado de alerta. Por outras palavras, estavam a dormir.
Os polvos sonham?
Estes novos conhecimentos têm implicações interessantes para os polvos e para a evolução do sono, mas também levantam questões intrigantes.
“A alternância de estados de sono observada no Octopus insularis parece bastante semelhante à nossa, apesar da enorme distância evolutiva entre cefalópodes e vertebrados, com uma divergência precoce de linhagens há cerca de 500 milhões de anos”, diz Sylvia Medeiros, outra das autoras do estudo. “Se dois estados diferentes do sono evoluíram duas vezes em vertebrados e invertebrados, o que é que moldou este processo fisiológico?”, é uma das perguntas da investigadora deixadas no comunicado.
A segunda está relacionada com o acto de sonhar. “Não é possível afirmar que os polvos estão a sonhar porque não lhes podemos perguntar, mas os nossos resultados sugerem que, durante o sono activo, o polvo pode ter um estado semelhante ao sono REM, o estado durante o qual os humanos mais sonham”, afirma Sylvia Medeiros.
Mas se de facto os polvos sonham, é pouco provável que vivenciem sonhos complexos como os dos humanos, com enredos e personagens à mistura: o sono activo do polvo tem uma duração muito curta, normalmente entre alguns segundos a um minuto. “Se durante este estado há algum sonho em curso deve ser tão pequeno como alguns segundos de um vídeo ou mesmo um gif.”
Em estudos futuros, os cientistas gostavam de registar a actividade cerebral de cefalópodes para entender melhor o que acontece quando dormem. “É tentador especular se, assim como em humanos, o acto de sonhar pode ajudar o polvo a adaptar-se aos desafios ambientais e a promover a aprendizagem. Os polvos têm pesadelos? Os sonhos estão relacionados com a mudança da cor da pele enquanto dormem? Poderíamos aprender a ler os seus sonhos?”, acrescenta Sidarta Ribeiro. São perguntas que ficam, para já, sem resposta.