Começa assim: estradas desertas, não se vê vivalma, um silêncio seco apenas interrompido pelo pigarrear das cigarras... Uma voz relembra nos altifalantes o estado de emergência em vigor e o dever geral de recolhimento. Há um inimigo à solta e um estado pós-apocalíptico para o receber. Podia ser a nossa realidade, podia ser 2021. A distopia trocou de poiso. Trata-se das ruas de Tokyo-3 (que se desloca para baixo do solo sempre que a ameaça volta… Estaremos a caminhar para aí?), cidade protagonista de Neon Genesis Evangelion, anime japonesa de 1995 realizada por Hideaki Anno que se viria a tornar um fenómeno planetário. Um dos rosebud da minha infância, uma infância demasiado infantil para entender, à data (a série foi exibida na SIC em 1998), o que via no ecrã. Agora revista, apercebo-me de como essa incompreensão não podia ser mais natural. E, porém, desse precoce contacto conservaria até hoje uma impressão de tal forma forte ao ponto de Evangelion me ter permanecido na cabeça como uma espécie de memória mítica: cores garridas e formas bizarras, desenhos lindíssimos, por vezes apavorantes, criaturas cujo terror advinha não de um pré-formatado feitio amonstroado, mas antes da sua singularidade, da estranheza (não necessariamente, ou de todo, violenta ou ameaçadora) da sua fisionomia — e, claro, do cataclismo iminente que representavam para a humanidade (Tu n’as rien vu à Hiroshima, uma nuvem em forma de cogumelo, ali tão perto de Tóquio, que só conhecíamos de imagens longínquas…).
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Começa assim: estradas desertas, não se vê vivalma, um silêncio seco apenas interrompido pelo pigarrear das cigarras... Uma voz relembra nos altifalantes o estado de emergência em vigor e o dever geral de recolhimento. Há um inimigo à solta e um estado pós-apocalíptico para o receber. Podia ser a nossa realidade, podia ser 2021. A distopia trocou de poiso. Trata-se das ruas de Tokyo-3 (que se desloca para baixo do solo sempre que a ameaça volta… Estaremos a caminhar para aí?), cidade protagonista de Neon Genesis Evangelion, anime japonesa de 1995 realizada por Hideaki Anno que se viria a tornar um fenómeno planetário. Um dos rosebud da minha infância, uma infância demasiado infantil para entender, à data (a série foi exibida na SIC em 1998), o que via no ecrã. Agora revista, apercebo-me de como essa incompreensão não podia ser mais natural. E, porém, desse precoce contacto conservaria até hoje uma impressão de tal forma forte ao ponto de Evangelion me ter permanecido na cabeça como uma espécie de memória mítica: cores garridas e formas bizarras, desenhos lindíssimos, por vezes apavorantes, criaturas cujo terror advinha não de um pré-formatado feitio amonstroado, mas antes da sua singularidade, da estranheza (não necessariamente, ou de todo, violenta ou ameaçadora) da sua fisionomia — e, claro, do cataclismo iminente que representavam para a humanidade (Tu n’as rien vu à Hiroshima, uma nuvem em forma de cogumelo, ali tão perto de Tóquio, que só conhecíamos de imagens longínquas…).