Mobilizar o conhecimento sociológico contra a lógica pandémica
O vírus revelou e multiplicou as desigualdades sociais (de classe, de género, de etnia), atingindo os mais vulneráveis (os pobres, os racializados, as mulheres).
A Sociologia é uma ciência social com um vasto arsenal teórico e metodológico para pensar os períodos de grande aceleração social, como o que presentemente vivemos. Esse será um mote irrecusável para o XI Congresso Português de Sociologia (sob o lema “Identidades ao rubro: diferenças, pertenças e populismos num mundo efervescente”), organizado pela Associação Portuguesa de Sociologia, em parceria com o ESPP/ISCTE-IUL e o ICS-ULisboa, de 29 a 31 de março.
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A Sociologia é uma ciência social com um vasto arsenal teórico e metodológico para pensar os períodos de grande aceleração social, como o que presentemente vivemos. Esse será um mote irrecusável para o XI Congresso Português de Sociologia (sob o lema “Identidades ao rubro: diferenças, pertenças e populismos num mundo efervescente”), organizado pela Associação Portuguesa de Sociologia, em parceria com o ESPP/ISCTE-IUL e o ICS-ULisboa, de 29 a 31 de março.
Momentos de descontinuidade, incerteza e multiplicação de vulnerabilidades não nos são estranhos, embora a crise pandémica exacerbe a perceção de falta de controlo sobre o futuro e obrigue as pessoas a processos de ressocialização bruscos e até violentos. O vírus, percebe-se bem agora, é um fenómeno essencialmente social, que resulta, em boa parte, de um modelo económico predatório que, na busca infinita de acumulação, desprezou os limites que a natureza nos impõe.
A jusante, o vírus revelou e multiplicou as desigualdades sociais (de classe, de género, de etnia), atingindo os mais vulneráveis (os pobres, os racializados, as mulheres). De igual modo, expôs as enormes fragilidades de um sistema de reprodução social extremamente desgastado por décadas de desinvestimento público (saúde, habitação, redes de cuidados). Não menos importante, a pandemia catapultou com maior veemência um ecossistema de ódio e de desconfiança, que se alimenta e é alimentado pelos algoritmos da inteligência artificial usados nas plataformas e redes sociais; algoritmos que, longe de serem neutros, nos conduzem em navegações ensimesmadas, autorreferenciais, cada vez mais extremas e fechadas, qual “toca de coelho” em que nos encerramos, cortando as pontes com os outros.
Em simultâneo, a normalização dos estados de exceção abre as portas a uma certa naturalização dos limites aos Direitos Fundamentais, banalizando uma era de vigilância, controlo e biopoder alicerçado nas mais modernas tecnologias baseadas no panótico (tudo ver sem ser nunca visto). Finalmente, recrudescem os excludentes nacionalismos, tão hiperbolicamente visível no fechamento de fronteiras ou na disputa sobre as vacinas, a par do desvanecimento das estruturas internacionais de solidariedade.
Os sociólogos mobilizaram-se desde o início da pandemia, procurando mapear, por um lado, o impacto da crise nas várias formas de desigualdade social e, por outro, as práticas e organizações que, um pouco por todo mundo, tantas vezes sem apoio e auto-organizando-se localmente, redesenhando a ação coletiva, as sociabilidades de entreajuda e a defesa do bem comum.
Mas faltou, por parte dos decisores, sensibilidade sociológica. Não quiseram ou não souberam interpretar os comportamentos sociais, reduzindo-os, tantas vezes, a meras manifestações psicológicas ou patológicas. Com isso perderam capacidade de coordenação, organização e planeamento estratégico. Num tempo em que o regresso da ciência se faz em acesa disputa com a realidade dos factos alternativos e da pós-verdade, importaria desocultar os mecanismos que produzem a descrença nas descobertas científicas e mesmo na possibilidade de chegar a compromissos de trabalho em torno da discussão crítica de argumentos e perspetivas.
A atomização das opiniões e dos pontos de vista, tidos como irreconciliáveis e irredutíveis, grassa num contexto de isolamento, medo e insegurança que deslassa as pertenças sociais. Mobilizar o conhecimento sociológico incomoda e desestabiliza processos de decisão superficiais e burocráticos, ao revelar interesses em disputa, preconceitos enraizados ou engrenagens de fabricação de lugares-comuns. Seria de exigir muito mais, na imaginação e experimentação de futuros possíveis, pois a única perspetiva realista é a de não regressarmos ao “normal” que mais não é do que um caldeirão de crises infinitas onde tudo o que é comum se derrete.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico