Europa e vacinas
Análises ligeiras ou soluções simplistas podem confortar preconceitos ou garantir popularidade, mas não contribuem em nada para fazermos melhor, como comunidade, como país, como Europa.
Tenho visto pessoas que respeito pronunciarem-se de forma rápida e definitiva sobre a estratégia de vacinação europeia e a responsabilidade da Comissão na gestão da pandemia.
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Tenho visto pessoas que respeito pronunciarem-se de forma rápida e definitiva sobre a estratégia de vacinação europeia e a responsabilidade da Comissão na gestão da pandemia.
O debate sobre temas europeus é sempre bem-vindo, sendo o escrutínio, a crítica e o comentário fundamentais para a consolidação da democracia europeia.
É, no entanto, importante que estes debates assentem em premissas claras e que não se confundam factos, conceitos e números. Proponho-me por isso contribuir para o debate com alguns dados relativos à dimensão sanitária da crise.
A Comissão Europeia tem procurado desde o início da pandemia coordenar as posições dos Estados-membros para evitar respostas nacionais desarticuladas. Não tem sido simples, porque a saúde não é matéria de competência exclusiva europeia.
Ainda assim, a Comissão agiu de imediato para abolir as restrições às exportações de medicamentos e material de proteção. Avançou para a compra conjunta de máscaras, ventiladores e material de laboratório de forma a disponibilizá-los aos países. Possibilitou a reprogramação dos fundos de coesão para permitir aos Estados apoiar a saúde e os sectores económicos e sociais mais afetados. Cerca de sete mil milhões de euros destes fundos foram já utilizados para reforçar a resposta dos hospitais, laboratórios e centros de saúde em toda a UE.
A Comissão apresentou também, em junho de 2020, uma estratégia para acelerar o desenvolvimento e fabrico de vacinas contra a covid-19, que incluiu a negociação de contratos prévios de aquisição que permitissem, por um lado, contribuir para o desenvolvimento das vacinas e, por outro, garantir que os Estados-membros a elas tivessem acesso.
Entre as mais de cem manifestações de interesse da indústria farmacêutica, a Comissão selecionou seis fabricantes – BioNTech-Pfizer, Moderna, AstraZeneca, Johnson & Johnson, Sanofi-GSK e CureVac – com os quais negociou a compra de cerca de 2,6 mil milhões de doses (cinco vezes a população europeia), mobilizando 2,9 mil milhões de euros. Não foi açambarcamento, mas prudência: no Verão de 2020 ninguém podia prever que fabricantes viriam a ter sucesso.
Se a UE conseguiu preços unitários abaixo de outros países foi precisamente porque negociou em bloco. Destes seis fabricantes, cinco desenvolveram uma vacina com sucesso e quatro receberam já a aprovação da Agência Europeia de Medicamentos. Com todos foram acordadas quantidades, prazos de entrega e as fábricas encarregues da produção. A Comissão não esteve sozinha: vários países participaram e acompanharam a negociação.
Esta estratégia evitou que cada país negociasse por si, o que geraria uma competição entre Estados-membros, com alguns em melhor posição do que a maioria para conseguir acordos favoráveis. Garantiu também que todos fossem tratados com equidade, recebendo um número de vacinas proporcional à sua população.
É notório, contudo, que a indústria não conseguiu acompanhar a ciência. Nem todos os fabricantes cumpriram os acordos. Alguns subestimaram a capacidade de produção, como a AstraZeneca que só prevê entregar 30 milhões de vacinas no primeiro trimestre de 2021, em vez dos 90 milhões acordados. Apesar das dificuldades, mais de 88 milhões de doses foram, até hoje, entregues aos Estados-membros e 62 milhões de doses administradas.
Ainda que a Comissão seja corresponsável por garantir que as vacinas chegam aos Estados-membros, os planos de vacinação são da inteira responsabilidade de cada país. Há diferenças de ritmo significativas, entre perto de 30% da população que recebeu pelo menos uma vacina em Malta a menos de 5% noutros casos. Alguns países deram preferência, nas suas encomendas, a alguns fabricantes, afastando-se da chave de repartição europeia e permitindo aos restantes aceder aos lotes não usados. Foram escolhas nacionais que acabaram por refletir os atrasos nas entregas.
Diferenças no ritmo da vacinação com países terceiros decorrem também de escolhas políticas que envolvem riscos, como espaçar as duas doses para lá do protocolo recomendado, ou a disponibilização de dados individuais às farmacêuticas. Casos de formação de coágulos sanguíneos em pessoas vacinadas levaram alguns países a suspender a vacinação da AstraZeneca. Trata-se de questões de grande sensibilidade que não podem ser geridas ligeiramente, sob pena de afetarem a confiança na vacinação.
Neste momento, a prioridade é aumentar o número de vacinas disponibilizadas no segundo trimestre. A Comissão está a trabalhar afincadamente com todos os produtores para cumprir o objetivo de termos 70% da população adulta vacinada no fim do Verão. Com a aprovação da vacina da Johnson & Johnson – de dose única – e com a Pfizer e a Moderna a manter os compromissos, estaremos mais perto de o conseguir.
Finalmente, a solidariedade – ou melhor, responsabilidade – internacional. É notório que uma pandemia global só se resolve quando todos os países a tiverem ultrapassado, sob pena de importarmos mutações que nos reenviarão ao ponto de partida. A UE mobilizou desde o início fundos para apoiar países terceiros no combate à pandemia, lançou o mecanismo COVAX com a OMS, e assegurou um financiamento de mil milhões de euros para garantir aos países de baixo e médio rendimento um acesso justo e equitativo a vacinas seguras.
Até hoje, mais de 77 milhões de doses foram exportadas de fábricas europeias para 33 países, incluindo 21 milhões de doses para o Reino Unido. Sim, é possível que a Europa não tenha sido suficientemente protecionista ao não incluir cláusulas de “Europa primeiro” nos contratos. Contudo, numa pandemia, erigir barreiras numa cadeia de produção onde todos dependem de todos é ineficaz no plano industrial, perigoso para o combate ao vírus e eticamente duvidoso. No entanto, propusemos já medidas que nos permitem ter mais transparência sobre quem produz e para onde, e fazer depender as exportações do cumprimento dos contratos, incluindo critérios de reciprocidade e proporcionalidade sobretudo com países que também produzem vacinas.
Havendo vidas em causa, estamos numa corrida contra o tempo. A exigência tem de ser máxima, a complacência mínima. Mas, para sabermos o que corrigir e melhorar, é importante saber identificar falhas, responsabilidades dos diferentes atores, gerir as incertezas científicas e equilibrar a prudência com os riscos inevitáveis. Análises ligeiras ou soluções simplistas podem confortar preconceitos ou garantir popularidade, mas não contribuem em nada para fazermos melhor, como comunidade, como país, como Europa.
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico