Teatro Português – cinco séculos de confinamento
O nosso repertório teatral clássico não consegue singrar hoje, não por falta de qualidades estéticas e teatrais, mas por falta de visão e vontade política.
Usemos da idade que voa. Este nosso presente é muito bom porque está em condição de ser melhor se o soubéramos negociar.
Comedia Ulysippo, Jorge Ferreira de Vasconcelos, ca. 1560
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Usemos da idade que voa. Este nosso presente é muito bom porque está em condição de ser melhor se o soubéramos negociar.
Comedia Ulysippo, Jorge Ferreira de Vasconcelos, ca. 1560
Se consultarmos uma História do Teatro Mundial, observamos que bem pouco espaço ocupa aí o Teatro Português. Um capítulo pequeno. Um parágrafo. Às vezes um só nome: Gil Vicente. E contudo, nada mais injusto.
Luís de Camões, que também escreveu teatro, dizia que “quem não conhece a arte não a estima”, máxima que se aplica amplamente ao Teatro Português quinhentista.
Foi nesse fulgurante século XVI e nas obras dramáticas de Jorge Ferreira de Vasconcelos que encontrei a estrada de Damasco que mudaria o meu olhar sobre o Teatro Português. As suas impressionantes comédias dão-nos em chave de teatro, Portugal inteiro, com os seus vícios e virtudes, o medo do outro, a desconfiança, a inveja, o gosto da censura, mas também a salutar alegria e humor, que nos embrenha numa floresta de imagens e sentidos novos, onde impera a inteligência, a graça e a beleza, a tolerância e a justiça. Com agudeza e elegância, pugna-se aqui pelo desejo de que cada indivíduo aja e pense com liberdade e sentido crítico, a vida, a cidade, e o mundo que o rodeia.
Essa descoberta levou-me a conhecer o repertório teatral renascentista, como um todo, um Teatro Clássico Português que reclama sair de um confinamento de cinco séculos, que urge salvaguardar, dar-lhe vida, cena, público.
Dramaturgos como Gil Vicente, Sá de Miranda, Jorge Ferreira de Vasconcelos, António Ferreira, Diogo de Teive, Luís de Camões, António Ribeiro Chiado, João de Escovar, António Prestes, Jerónimo Ribeiro, Anrique da Mota, Afonso Álvares, Sebastião Pires, e obras anónimas como o Auto dos Sátiros, o Auto de Dom Fernando e o Auto de Dom Luís e dos Turcos, o Auto da Padeiras ou da Fome, a Farsa Penada, e outras, perspectivam o corpus do teatro português do século xvi não como uma realização menor, mas um lugar pioneiro que devemos revisitar e conhecer.
O teatro renascentista português traz consigo temas e preocupações próprias que merecem ser conhecidas e apreciadas nos palcos de hoje. Estas obras teatrais dão-nos a imagem poliédrica de uma época riquíssima, de tempos vertiginosos de crise e mudança, em que a partir de Lisboa, “cais do mundo”, se desvendava novas terras e novas gentes à escala planetária, uma realidade com zonas de luz e sombra, onde pela positiva há descoberta, encontro, ciência, e pela negativa há ganância, abuso, corrupção, e onde surpreendentemente se discutem temas tão centrais como o lugar da mulher na sociedade, o livre arbítrio, a tolerância, o outro, a afirmação do indivíduo como um ser pleno e inteiro.
A acção da censura levou a que as grandes obras da literatura portuguesa entrassem sucessivamente nos Índices inquisitoriais. Este confinamento secular inaugurado no contexto da Contra Reforma foi sumamente trágico para o teatro português, mas, paradoxalmente, essa acção nefasta continuou e continua, pois a programação dos teatros nacionais, que têm por missão serem a casa do repertório de língua portuguesa não o representam e nem sequer se constituem como parceiros de quem tenha o projecto de os representar. Nesse sentido, o nosso repertório teatral clássico não consegue singrar hoje, não por falta de qualidades estéticas e teatrais, mas por falta de visão e vontade política, e porque, como dizia Jorge de Sena, somos um país de “possuídos”, indiferente à valorização dos seus clássicos, do seu património, e ao legado dos seus antecessores.
Este repertório, que foi atacado pelas várias censuras do tempo, ainda assim foi capaz de desafiar o próprio destino, salvaguardando a memória de si próprio, pelo que pô-lo em cena é um acto de justiça e reparação, é conceder existência e imortalidade a uma determinada obra, é praticar um ritual de passagem, de renascimento de um legado que deve estar sempre a ser burilado.
Teatro é essa arte milenar cujo significado polissémico contempla um texto escrito, um edifício “lugar onde se vai para ver” e onde, simultaneamente, acontece o drama, a própria representação. Teatro quer dizer ver, olhar com atenção, perceber, viver uma experiência intensa, envolvente, inquiridora. Teatro é o lugar privilegiado de encontro entre o actor e o espectador. Teatro pode ser uma viagem de uma noite ou de uma vida inteira.
Teatro é para mim, hoje, percorrer essa terra incógnita, esses autores e obras tão diversas, que nos devolvem um passado fascinante e singular, que está na origem deste nosso presente em constante mutação.
E tal como cada livro tem o seu próprio destino, também cada povo tem a sua própria história, o seu código genético teatral, o seu “caso” colectivo em cena. Manter viva a herança teatral portuguesa, defendendo o direito de poder sentir, pensar e enunciar a arte, a ciência, a contemporaneidade e o futuro na língua portuguesa, é uma questão de defesa da diversidade cultural e linguística e de identidade.
Dia Mundial do Teatro, 27 de Março de 2021