Contraciclos

Parece confirmar-se uma vez mais a triste ideia de que Portugal voga com 30 anos de atraso em relação à Europa: os nossos vizinhos europeus estão, em 2021, preocupados com os desafios das alterações climáticas; já o Porto permanece em 1990 a debater centros comerciais.

Recentemente, várias cidades europeias têm mostrado vontade de ampliar as áreas verdes nos seus centros para aumentar a qualidade de vida dos seus habitantes e responder aos desafios climáticos coevos. Em Paris, a câmara local planeia transformar os Campos Elísios num massivo jardim, com o objetivo de renovar a mítica artéria e diminuir a poluição automóvel provocada pelos três mil veículos que ali circulam por hora. Barcelona prepara-se para criar perto de 800 mil m2 de áreas verdes e transformar 49 mil m2 de ruas em zonas pedonais, no sentido de “naturalizar” a cidade. Em Amesterdão, a renovação do Universiteitskwartier (bairro universitário) contemplará a ampliação da área verde e a transformação de ruas em zonas pedonais. Noutros pontos da Europa, a plantação de miniflorestas tem sido uma solução aplicada para promover a biodiversidade, aumentar a absorção de carbono, melhorar a qualidade do ar e combater a crise climática. Lisboa contará em breve com um destes espaços verdes, com uma área de cerca de 300 m2, numa zona nobre e central da cidade, no campus da Faculdade de Ciências.

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Recentemente, várias cidades europeias têm mostrado vontade de ampliar as áreas verdes nos seus centros para aumentar a qualidade de vida dos seus habitantes e responder aos desafios climáticos coevos. Em Paris, a câmara local planeia transformar os Campos Elísios num massivo jardim, com o objetivo de renovar a mítica artéria e diminuir a poluição automóvel provocada pelos três mil veículos que ali circulam por hora. Barcelona prepara-se para criar perto de 800 mil m2 de áreas verdes e transformar 49 mil m2 de ruas em zonas pedonais, no sentido de “naturalizar” a cidade. Em Amesterdão, a renovação do Universiteitskwartier (bairro universitário) contemplará a ampliação da área verde e a transformação de ruas em zonas pedonais. Noutros pontos da Europa, a plantação de miniflorestas tem sido uma solução aplicada para promover a biodiversidade, aumentar a absorção de carbono, melhorar a qualidade do ar e combater a crise climática. Lisboa contará em breve com um destes espaços verdes, com uma área de cerca de 300 m2, numa zona nobre e central da cidade, no campus da Faculdade de Ciências.

Entretanto, no Porto, discute-se a construção de mais um centro comercial no centro da cidade, nos terrenos da antiga estação ferroviária do Porto-Boavista. Um empreendimento desta natureza agravará certamente os problemas de tráfego automóvel e poluição atmosférica que afetam a Invicta e mitigará ou anulará mesmo as medidas que a Câmara Municipal do Porto (CMP) pretende implementar na cidade, como a duplicação das suas áreas verdes, a construção do terminal de Campanhã para retirar CO2 do centro da cidade ou a produção de energia limpa. Parece confirmar-se uma vez mais a triste ideia de que Portugal voga com 30 anos de atraso em relação à Europa: os nossos vizinhos europeus estão, em 2021, preocupados com os desafios das alterações climáticas; já o Porto permanece em 1990 a debater centros comerciais.

A história deste processo, em traços gerais, é conhecida. No ano 2000, na sequência do encerramento da linha férrea do Porto à Póvoa de Varzim e sua substituição por uma linha metropolitana, os terrenos da antiga estação da Boavista foram objeto de um contrato-promessa entre a empresa pública gestora da ferrovia (então Refer, atual IP – Infraestruturas de Portugal) e a empresa El Corte Inglés (ECI), pelo qual se acordava a concessão do direito de superfície, tendo em vista a construção de um centro comercial. Em 2003, porém, o então presidente da CMP, Rui Rio, “vetou” a instalação do equipamento na Boavista e a retalhista espanhola acabou por se fixar em Gaia. Tudo parecia indicar que o processo se encerrara. Contudo, o contrato assinado em 2000 foi sucessivamente renovado ao longo dos anos (2002, 2003, 2010 e 2018), reservando os terrenos ao ECI e impedindo que estes fossem colocados ao serviço do Grande Porto. Tendo em conta a sua localização, não é crível que outros empreendedores não tenham contactado a Refer/IP para lhes dar um novo uso, tendo, porém, esbarrado no contrato-promessa assinado com o ECI. Entretanto, a firma espanhola nada fez com o espaço, que permaneceu em estado de abandono desde 2000.

A ação da CMP depois do “veto” de Rui Rio é desconhecida, mas seria relevante esclarecer se quer o então presidente, quer o atual autarca, Rui Moreira, perante as sucessivas renovações do contrato-promessa com o ECI, envidaram esforços para tentar devolver os terrenos à cidade. Há cerca de um ano, o executivo da CMP aprovou uma recomendação ao governo para reverter o negócio, que, contudo, não foi acatada pelo governo.

No âmbito deste processo, a Comissão Parlamentar de Economia, Inovação, Obras Públicas e Habitação do Parlamento realizou nos passados dias 16 e 24 de março duas audições, respetivamente, ao presidente da IP, engenheiro António Laranjo, e ao ministro das Infraestruturas, Pedro Nuno Santos. Estas audições foram​ desde logo um enorme triunfo para os cidadãos e cidadãs que no Porto se têm movido para que nos terrenos em causa não seja construído mais um centro comercial, mas sim um muito necessário espaço verde, que inclua a preservação da antiga estação ferroviária da Boavista – a primeira do Porto (inaugurada em 1875). Como consequência da iniciativa cidadã, o poder legislativo resolveu ouvir os responsáveis da IP e da tutela, que até então se tinham mantido em silêncio sobre a questão, apesar dos pedidos de esclarecimento de alguns partidos e de toda a polémica que o assunto tem gerado no Porto.

As audições foram bastante informativas. Finalmente, souberam-se detalhes importantes do contrato-promessa entre a IP e o ECI, nomeadamente o preço final da transação (20,82 milhões de euros) e o valor já entregue como sinal (19,97 milhões de euros). Aquele preço foi fixado em 2000, não tendo sofrido qualquer alteração em nenhuma das renovações do contrato, apesar do forte aumento de preços que o setor imobiliário registou no Porto nos últimos 20 anos. Perante este facto, o engenheiro António Laranjo revelou que o valor final ia ser reavaliado pela Direção Geral do Tesouro e Finanças, devido ao novo pedido de informação prévia (PIP) apresentado pelo ECI e aprovado pela CMP em outubro do ano passado (e que, de algum modo, contraria a recomendação que fizera ao governo um ano antes)​. É de estranhar que esta alteração do preço tenha ocorrido tão tardiamente, bem como se estranha que uma empresa privada assine um contrato sem saber quanto terá que pagar ao certo. Aliás, tão estranho é que até o próprio ECI parece ter ficado surpreendido com a informação. Legitimamente poder-se-á perguntar até que ponto esta alegada reavaliação do preço não se terá ficado a dever à pressão da opinião pública e dos cidadãos e cidadãs que exigem mais transparência na gestão da coisa pública e que empresas públicas não se sintam acima do escrutínio democrático dos cidadãos e cidadãs e dos seus representantes.

Ainda sobre o contrato, tanto o engenheiro António Laranjo como o ministro Pedro Nuno Santos argumentaram que a IP faz questão de respeitar os compromissos assumidos. É uma postura louvável, mas que não explica por que razões o contrato foi sucessivamente renovado ao longo dos anos – não-renovação está muito longe de significar rescisão unilateral do contrato. É, aliás, de lamentar que o presidente da IP e seus antecessores desde 2000 tenham mais consideração para com este contrato (renovando-o sem a tal serem obrigados) do que com o contrato social que, enquanto gestores públicos, assumiram perante os cidadãos portugueses de proteger o interesse público, algo que visivelmente não está a ser feito na questão dos terrenos da antiga estação da Boavista. Perante as explicações de António Laranjo e de Pedro Nuno Santos​, fica no ar a questão de saber até quando será o contrato com o ECI renovado. Até a empresa espanhola se resolver a iniciar o empreendimento? E, iniciando-o, que garantias há de que o termina, tendo em conta as suas conhecidas dificuldades financeiras e a possibilidade de o seu modelo de negócio passar a privilegiar o e-commerce?

Para reforçar a pretensa inexpugnabilidade do contrato, o presidente da IP e o ministro da tutela realçaram a onerosidade da indemnização em caso de incumprimento, que incluiria a devolução do sinal em dobro, bem como quaisquer direitos vincendos que o ECI pudesse reclamar. Aqui, o engenheiro António Laranjo parece desconhecer a lei que estipula claramente que “não há lugar, pelo não cumprimento do contrato, a qualquer outra indemnização, nos casos de perda do sinal ou de pagamento do dobro deste” (art.º 442.º, n.º 4, do Código Civil). A devolver algo, seria o sinal em dobro, mas isto apenas por causa imputável ao promitente vendedor, caso contrário só o valor do sinal é devido (n.º 2 do mesmo artigo). O estipulado na lei levanta ainda outra questão interessante. Se o contrato de 2000 (ou qualquer um dos seus adicionais até 2018) não tivesse sido renovado, acabaria por chegar ao seu termo sem que o ECI tivesse cumprido a sua parte do acordo, o que, se fosse por motivo a si imputável, redundaria na perda do sinal. Por outras palavras, aquilo que poderia significar uma indemnização ao Estado (a perda do sinal por parte do ECI) tem sido sucessivamente transformado numa espada de Dâmocles sobre as finanças públicas, sob a forma da devolução do sinal em dobro, e que agora é usada como argumento para justificar a inevitabilidade do negócio.

Por fim, uma última palavra sobre a estação do Porto-Boavista. Se há algo que entristece os entusiastas ferroviários e os especialistas em património industrial é ver que as empresas ferroviárias não protegem o seu próprio património histórico. O presidente da IP evocou que nem a Direção Geral do Património Cultural nem a CMP reconheceram valor ao edifício. Embora isto seja verdade, não deveria impedir a IP de a proteger e valorizar, como aliás tem feito – e muito bem, verdade seja dita – em dezenas de contratos de concessão de norte a sul do país. Seria desejável que a empresa pública, pelo menos, não cedesse os terrenos sem garantir uma cláusula de preservação da estação, independentemente das opiniões das entidades que regem o património cultural em Portugal, sobretudo quando sabermos tratar-se da primeira estação ferroviária do Porto.

Toda esta narrativa ilustra um conjunto de entidades em contraciclo com a realidade. A Câmara Municipal do Porto, que, em plena crise climática (que exige mais espaços verdes, menos consumismo, menos tráfego automóvel) parece nada querer fazer para obstar à construção de um centro comercial num dos últimos terrenos não construídos do centro da cidade; a IP – Infraestruturas de Portugal, que vinte anos após a entrada no século XXI continua com as dificuldades das décadas passadas em partilhar publicamente os documentos que assina como entidade que devia proteger o interesse público (só a mando do Parlamento o fez); e próprio El Corte Inglés, que aparentemente vai continuar a apostar num modelo de comércio que a atual pandemia pôs em causa e que poderá (deverá?) a breve trecho ser substituído em grande medida pelo comércio eletrónico.

Entretanto, no Porto, vários cidadãos e cidadãs, atentos à realidade e aos desafios da contemporaneidade, têm-se mobilizado para defender uma cidade mais resiliente às alterações climáticas e uma democracia mais participativa, transparente e que veja os cidadãos como membros ativos da comunidade e não como obstáculos à ação dos poderes públicos.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico