Banco de Gorringe, o novo Adamastor
Passados 55 anos desde que o Prof. Frederico Machado avançou notavelmente com a proposta de um epicentro para o terramoto de 1755 no Golfo de Cádis, e a geologia marinha baptizou o monstro de Gorringe, seria expectável que a ciência nacional tivesse feito mais progressos. Mas não.
O que têm em comum o Banco de Gorringe, estrutura geológica submarina a que se tem atribuído nas últimas décadas a origem do terramoto de 1755, e o mostrengo mítico de Camões, Pessoa ou Saramago? Isso mesmo de terem ganho, cada um à sua maneira, proporções míticas. Mas, tal como a Esfinge, o Adamastor perdeu o seu poder ao ser decifrado, quando respondeu às palavras de Gama: “Quem és tu?” Enquanto que o Gorringe continua, imundo e grosso, a povoar os nossos piores pesadelos sem ser confrontado. Até quando?
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O que têm em comum o Banco de Gorringe, estrutura geológica submarina a que se tem atribuído nas últimas décadas a origem do terramoto de 1755, e o mostrengo mítico de Camões, Pessoa ou Saramago? Isso mesmo de terem ganho, cada um à sua maneira, proporções míticas. Mas, tal como a Esfinge, o Adamastor perdeu o seu poder ao ser decifrado, quando respondeu às palavras de Gama: “Quem és tu?” Enquanto que o Gorringe continua, imundo e grosso, a povoar os nossos piores pesadelos sem ser confrontado. Até quando?
E não, não se trata aqui de negacionismo de tipo terraplanista: as falhas geológicas do Golfo de Cádis traçam o contacto entre duas placas tectónicas e são por isso uma ameaça séria, como ficou claro em 1969 quando Portugal foi abalado por um violento sismo com magnitude 7,8. Mas há que realçar as diferenças entre a catástrofe de 1755 e os sérios danos sofridos em 1969. Que mais aconteceu na primeira ocasião, para que ganhasse tais proporções?
A resposta fácil, adoptada pelos sismólogos do séc. XX, foi atribuir ao terramoto de 1755 uma magnitude muito superior (sim, em sismologia 8,7 é muito superior a 7,8). Mas aí começaram as dificuldades, porque grandes magnitudes requerem grandes falhas geológicas, e mesmo o novo mostrengo encontrado a sudoeste do Cabo de São Vicente na década de 70 se revelava modesto para tal feito. O desafio estimulou a indústria dos investigadores, que desde então vêm esquadrinhando os fundos oceânicos à procura da parte escondida do monstro, mas não conseguiram até hoje meter o Rossio na Rua da Bestesga: as tentativas de resposta têm sido tão díspares quanto insatisfatórias.
Acresce a dificuldade adicional de entender que um distúrbio geológico a essa distância consiga surtir efeitos tão danosos em Lisboa, coisa inédita noutras paragens (com a excepção da Cidade do México em 1985, mas aí a ciência sismológica consegue explicar). Passados 55 anos desde que o Prof. Frederico Machado, no dealbar da teoria da Tectónica de Placas, avançou notavelmente com a proposta de um epicentro para o terramoto de 1755 no Golfo de Cádis, e a geologia marinha baptizou o monstro de Gorringe, seria expectável que a ciência nacional tivesse feito mais progressos. Mas não. Vamos repetindo placidamente ideias datadas, como se Gama tivesse regressado a Lisboa para relatar: “estava lá um monstro”, e a história acabasse aí.
Em 2003 o meu grupo de investigação publicou numa prestigiada revista científica com revisão por pares (Bulletin of the Seismological Society of America) uma interpretação alternativa para os danos causados em Lisboa pelo terramoto de 1755. A ideia, que retirava peso ao novo Adamastor e apontava para uma contribuição das falhas geológicas próximas de Lisboa, foi bem recebida internacionalmente, sendo mesmo destacada num editorial da revista Science, farol do progresso científico global. Mas a proposta foi rejeitada liminarmente como uma especulação descabida pela generalidade dos pares nacionais (faltava talvez um co-autor estrangeiro para lhe conferir credibilidade interna?).
Em 2020 reincidimos na mesma revista científica, chamando a atenção para o facto de que, à luz da sismologia moderna, o terramoto de 1755 gerado no Golfo de Cádis não terá ultrapassado a magnitude do seu sucessor de 1969, sendo portanto necessário encontrar melhores explicações para os danos excepcionais na região de Lisboa, e para o tsunami que causou. Explicações para as quais eram dadas algumas pistas, que permitiriam afinar as melhores medidas para mitigar o risco. Mais uma vez, o estudo teve o efeito de uma pedra atirada a um charco.
Veem estas reflexões a propósito do pequeno sismo com epicentro próximo de Lisboa que recentemente assustou os habitantes da cidade e de alguns concelhos limítrofes. A posição oficial, veiculada pelo presidente do IPMA através da comunicação social, parece sugerir o enfraquecimento do mito: “Apesar de os grandes sismos de escala regional que atingem Lisboa terem como origem a fronteira de placas entre África e Eurásia...”, começa o argumento. Mas após a vénia ao dogma, a contradição fica escondida com o rabo de fora, quando as declarações prosseguem para incluir: “... na zona do Vale do Tejo também existem fontes sísmicas importantes, como (...) aquela que destruiu Lisboa em 1531.” Sinal das primeiras brechas na monolítica visão que empurra para o fim do mar este mostrengo capaz de destruir a capital portuguesa? Se sim, se se reconhece que Lisboa tem na sua vizinhança estruturas geológicas activas com o potencial de causar a sua destruição, falta cumprir-se o desígnio de as estudar e entender, porque só nos conseguimos defender das ameaças que entendemos. Para tal, um primeiro passo seria direccionar para este parente pobre da investigação sismológica uma parte dos recursos destinados aos estudos da ameaça sísmica, em meu entender excessivamente focados na pesquisa da geologia submarina, afinal uma vocação mais natural no único Laboratório de Estado com responsabilidades no estudo dos tremores de terra mas cuja designação o vincula ao mar.
Em 1756 Kant escreveu, a propósito do terramoto de Lisboa: “Ao atribuir o tumulto de todas as águas do oceano a [um] único impacto que terá atingido o seu solo numa determinada área, não pretendo com isso negar a efectiva propagação do fogo subterrâneo sob a terra firme de quase todo o continente europeu.” Intuindo no início da frase teorias científicas que só se estabeleceriam nos séculos posteriores, o grande filósofo não conseguiu no entanto desligar-se das concepções aristotélicas que dominaram as teorias medievais sobre os terramotos, a que prestou tributo na conclusão. O paralelismo com as declarações citadas mais acima fala por si, mutatis mutandis.
No séc. XX, o filósofo Thomas Kuhn explicou o pejo às mudanças de paradigma científico, sistematicamente resistidas pelas comunidades científicas até que um novo edifício teórico esteja pronto, pejo de que Kant protagonizou um notável exemplo. Mas esse “horror ao vazio” que obsta à mudança dos paradigmas científicos não pode ser invocado para justificar o nosso apego obstinado a um modelo velho de mais de 50 anos, porque a sismologia evoluiu notavelmente durante esse período e fornece as respostas necessárias se se colocarem as perguntas certas. Assim consigamos devolver o Adamastor/Gorringe às suas reais proporções e retirar-lhe o poder esfíngico que nos distrai, para podermos descobrir o caminho para a eficaz gestão das vicissitudes de quem vive num território sísmico.