Comissão admite bloquear exportações de vacinas mesmo se as empresas estiverem a cumprir os contratos
Executivo avança proposta para “fortalecer” o mecanismo de transparência e autorização de exportações de vacinas contra a covid-19 em vigor desde Fevereiro, para assegurar reciprocidade e proporcionalidade no abastecimento de doses.
A Comissão Europeia desvendou, esta quarta-feira, a sua proposta de revisão do mecanismo de transparência para a autorização das exportações de vacinas produzidas na UE para países terceiros, que poderão vir a ser bloqueadas nos casos em que não sejam garantidos os princípios de reciprocidade e proporcionalidade nos fluxos ligados à cadeia de produção e na administração das doses.
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A Comissão Europeia desvendou, esta quarta-feira, a sua proposta de revisão do mecanismo de transparência para a autorização das exportações de vacinas produzidas na UE para países terceiros, que poderão vir a ser bloqueadas nos casos em que não sejam garantidos os princípios de reciprocidade e proporcionalidade nos fluxos ligados à cadeia de produção e na administração das doses.
Isto quer dizer que os Estados-membros, após uma avaliação em conjunto com a Comissão Europeia, poderão rejeitar um pedido de exportação feito por qualquer uma das empresas farmacêuticas que estão a produzir vacinas contra a covid-19 — incluindo aquelas que estão a cumprir os contratos de aquisição prévia com a UE — se o destino da remessa for um país que esteja a proibir ou limitar o envio de doses de vacinas, de matérias-primas e outras substâncias necessárias para a sua produção, ou então cuja situação epidemiológica, ou taxa de vacinação, não justifique “urgência” na entrega de centenas de milhares de doses.
Segundo explicou uma fonte europeia, o objectivo do mecanismo continua a ser garantir a “transparência” dos fluxos comerciais e garantir o respeito dos compromissos e obrigações fixadas nos contratos de aquisição prévia assinados entre as farmacêuticas e a UE. Porém, a UE verificou que é necessário introduzir novos elementos para que a aplicação deste sistema também assegure a “segurança e estabilidade” do abastecimento do mercado interno.
“O que vemos é que continua a haver um défice na produção de vacinas e um grande desequilíbrio na sua distribuição. Daí a necessidade de fortalecer o sistema actualmente em vigor com critérios adicionais, de forma a que as exportações ocorram num contexto de reciprocidade e proporcionalidade”, justificou, acrescentando que essa avaliação será qualitativa e não quantitativa e feita “caso a caso”.
Além de alargar os critérios de avaliação para a autorização das exportações, a Comissão alargou ainda a aplicação do mecanismo a 17 países que até agora estavam isentos, nomeadamente aqueles que pertencem ao Espaço Económico Europeu, caso da Noruega e da Suíça (onde se situam várias unidades farmacêuticas), ou os chamados países da vizinhança, que são os dos Balcãs Ocidentais e a Ucrânia, onde estão a ser administradas vacinas russas e chinesas. Os 92 países que integram a Covax continuam a beneficiar do regime de isenção ao abrigo deste mecanismo.
A proposta será discutida pelos líderes na sua reunião do Conselho Europeu por videoconferência de quinta-feira, e apesar de várias capitais terem manifestado reservas sobre a aplicação destes princípios de reciprocidade e proporcionalidade, e exprimido preocupação sobre as potenciais consequências negativas do bloqueio de exportações, a expectativa do executivo comunitário é de que acabem por dar luz verde a esta alteração do regulamento.
Em primeiro lugar, porque as alterações propostas no funcionamento do mecanismo de autorização de exportações cumprem as regras da Organização Mundial de Comércio, que, segundo apontou um responsável europeu, “prevêem este tipo de medidas para a promoção da segurança das cadeias de abastecimento”. Segundo garantiu, a aplicação deste modelo “fortalecido” não resulta em nenhuma restrição automática ou bloqueio permanente do envio de vacinas para o exterior, como se verifica noutros países.
Em segundo lugar, porque, ao contrário do que tem reclamado o Reino Unido, ou a farmacêutica AstraZeneca, as mudanças introduzidas não são direccionadas contra nenhum Estado-membro em particular, nem nenhuma empresa produtora de vacinas específica. Como explicou uma fonte europeia, teoricamente, poderiam ser recusados os pedidos de empresas como, por exemplo, a Pfizer, que até está a exceder os seus compromissos em termos de entregas de doses à UE, se a encomenda for dirigida a um país “que não precisa de vacinas agora”, ou porque não tem novos casos de infecções ou a sua campanha de vacinação já ultrapassou a meta da imunidade de grupo.
Mas fica claro que o Reino Unido e a AstraZeneca poderão ser imediatamente “atingidos” por bloqueios no âmbito desta revisão das regras, uma vez que o Governo britânico não está a permitir a saída de doses de vacinas fabricadas no seu território e a farmacêutica anglo-sueca, que continua sem previsão de poder realizar as entregas das doses encomendadas pelos 27, não está a recorrer às suas unidades de produção britânicas, ao contrário do previsto no contrato com a Comissão Europeia. Além disso, já tem uma taxa de vacinação muito superior à média europeia,
Ainda assim, os responsáveis da Comissão desmentem que a revisão tenha como objectivo consagrar uma nova política de “Europe first” ou mascarar a aplicação de um regime de proibição das exportações. “Existem vários países que estão, de facto, a priorizar as respectivas produções para uso interno”, disse uma fonte europeia, apontando mais uma vez o exemplo do Reino Unido. “Mas esse não é o caso da UE”, salientou, dizendo que os números provam que o bloco é o maior exportador de vacinas e “não tem interesse nenhum em bloquear as exportações”: até agora, dos 381 pedidos de autorização apresentados, só um foi rejeitado.
Em relação à aplicação do princípio da reciprocidade, a mesma fonte esclareceu que países como os Estados Unidos e a Suíça são “excelentes exemplos” de como esse objectivo pode ser alcançado. A norte-americana Moderna está a produzir uma parte das substâncias das suas vacinas na Suíça, e a exportá-las para as fábricas da UE. E apesar de a Administração norte-americana ter aprovado uma ordem executiva que trava a saída de doses, o país mantém um fluxo regular de exportações de matérias-primas e outros componentes necessários para a produção de vacinas e já garantiu à UE o “retorno” de todas as vacinas cujo processo de acabamento seja realizado nos EUA.