Glândulas lacrimais “choram” num pratinho de laboratório

Os organóides das glândulas lacrimais podem agora ser usados para estudar as funções destas glândulas ou investigar melhor certos tratamentos.

Foto
Organóide de glândula lacrimal de ratinho com o produto lacrimal (a vermelho) Yorick Post/Instituto Hubrecht

Toda esta história ocorreu num pratinho de laboratório. Uma equipa de cientistas dos Países Baixos, Suíça e Estados Unidos usou a tecnologia organóide para desenvolver glândulas lacrimais em miniatura que conseguem mesmo chorar. Esta foi a primeira vez que se utilizou este tipo de tecnologia para criar em laboratório glândulas lacrimais de ratinho e de humano. Agora, investigadores de todo o mundo podem usar este modelo para identificar novas opções de tratamento para doentes com distúrbios nas glândulas lacrimais, como a síndrome do olho seco.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Toda esta história ocorreu num pratinho de laboratório. Uma equipa de cientistas dos Países Baixos, Suíça e Estados Unidos usou a tecnologia organóide para desenvolver glândulas lacrimais em miniatura que conseguem mesmo chorar. Esta foi a primeira vez que se utilizou este tipo de tecnologia para criar em laboratório glândulas lacrimais de ratinho e de humano. Agora, investigadores de todo o mundo podem usar este modelo para identificar novas opções de tratamento para doentes com distúrbios nas glândulas lacrimais, como a síndrome do olho seco.

A personagem principal desta história é a glândula lacrimal. Situada na parte superior da órbita do olho, é ela que secreta o fluido lacrimal, que possui componentes antibacterianos e é essencial para a lubrificação ou nutrição da córnea. Distúrbios nestas glândulas podem ter então consequências graves, como o olho seco e a úlcera da córnea. “Isto pode, nos casos mais graves, levar à cegueira”, realça em comunicado Rachel Kalmann, oftalmologista e cientista do Centro Médico Universitário de Utrecht, nos Países Baixos, que participou no recente estudo.

Para os cientistas deste trabalho, havia muito a saber sobre a biologia por detrás do funcionamento da glândula lacrimal e não havia bem um modelo para a estudar. A equipa liderada por Hans Clevers (do Instituto Hubrecht, nos Países Baixos) usou então a tecnologia organóide para desenvolver versões em miniatura de glândulas lacrimais de ratinho e humano num pratinho. Estes organóides são estruturas a três dimensões que mimetizam a função de órgãos verdadeiros. O grande desafio era fazer chorar estes organóides. 

O desafio foi cumprido quando se encontrou (e modificou) a receita certa que é usada no desenvolvimento dessas glândulas de laboratório. Tal como choramos em resposta à dor, os organóides choraram em resposta a estímulos químicos, como a hormona noradrenalina. As células dos organóides derramam as suas lágrimas dentro do próprio organóide. Consequentemente, o organóide incha como um balão. Isto pode assim ser usado como um indicador da produção de lágrimas. Os resultados foram publicados na última edição da revista científica Cell Stem Cell.

Mas a investigação não terminou aqui. Sabe-se que a glândula lacrimal é composta por muitos tipos de células e a equipa analisou as suas características, bem como a origem das componentes das lágrimas na glândula lacrimal. Criou-se então um atlas de células nessa glândula. Para isso, traçou-se o perfil dos tipos de células em amostras de tecido de glândulas lacrimais humanas ao se observar quais os genes que estavam expressos em cada célula. Com base nos genes expressos, conseguiu-se determinar que tipo de célula era e que tipo de lágrimas produzia.

“Tudo isto permitiu-nos ver quão diversas são as lágrimas”, nota ao PÚBLICO Marie Bannier, investigadora do Instituto Hubrecht e primeira autora do artigo. “Vimos que diferentes células são necessárias para produzir diferentes tipos de componentes das lágrimas. Também identificámos novas componentes das lágrimas.” Por exemplo, demonstrou-se que as células ductais e acinares na glândula lacrimal humana produzem um diferente repertório de componentes de lágrimas. Ao identificar essas componentes, pode vir a ter-se mais conhecimentos que contribuam na protecção dos olhos a infecções.

Futuro: transplantes

E qual o papel dos organóides neste atlas? Depois de os tipos de células terem sido identificados em tecido humano, verificou-se quais estavam nos organóides – e apenas se detectaram as células ductais. “Nos organóides temos uma panorâmica melhor das células estaminais do que no tecido”, refere a investigadora. No futuro, a equipa pretende desenvolver células acinares também num pratinho de laboratório. “Desta forma, podemos desenvolver uma glândula lacrimal completa em laboratório”, espera Yorick Post, também do Instituto Hubrecht.

Os organóides das glândulas lacrimais podem agora ser usados por cientistas de todo o mundo, que poderão estudar aí as funções das glândulas lacrimais num pratinho de laboratório, como a produção das lágrimas ou que estímulos desencadeiam o choro. Poderão ainda começar a estudar melhor certos tratamentos para indivíduos que sofrem de olho seco ou outras doenças. “Poderíamos testar muitos potenciais medicamentos que poderão melhorar a produção de lágrimas nessas pessoas”, exemplifica Marie Bannier. “Se um medicamento funciona em organóides de glândulas lacrimais humanas, há grandes possibilidades de funcionar também em doentes.”

No futuro, estes organóides poderão vir a servir para transplantes: doentes que têm glândulas lacrimais que não funcionam podem vir a beneficiar de transplantes de organóides de glândulas lacrimais. Marie Bannier indica que actualmente estão a decorrer ensaios clínicos (em humanos) com organóides de glândulas salivares para doentes que não produzem saliva suficiente e sofrem de boca seca. Quanto aos organóides das glândulas lacrimais, o seu uso em transplantes ainda “vai levar algum tempo, mas é viável”, garante a cientista.