Nas entrelinhas de Allen v. Farrow

A desconfiança face às narrativas das vítimas de agressão sexual e às suas verdadeiras intenções, em especial das mulheres, permanecem visceralmente entranhadas no tecido social. No que toca a Allen v. Farrow, este fenómeno é claro: dois pesos e duas medidas.

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A recente série documental da HBO, realizada por Kirby Dick e Amy Ziering, mergulha na vida familiar da actriz Mia Farrow, explorando a batalha judicial e pública com o ex-companheiro Woody Allen. Mais de duas décadas depois, o documentário dá voz a Dylan Farrow e ao abuso sexual que mantém ter sofrido com sete anos, às mãos do pai. Simultaneamente, aborda a relação do realizador com Soon-Yi Previn, agora Soon-Yi Allen — filha da sua companheira, que viu crescer desde os dez anos de idade e face a quem, de uma forma ou de outra, se assumia como figura parental.

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A recente série documental da HBO, realizada por Kirby Dick e Amy Ziering, mergulha na vida familiar da actriz Mia Farrow, explorando a batalha judicial e pública com o ex-companheiro Woody Allen. Mais de duas décadas depois, o documentário dá voz a Dylan Farrow e ao abuso sexual que mantém ter sofrido com sete anos, às mãos do pai. Simultaneamente, aborda a relação do realizador com Soon-Yi Previn, agora Soon-Yi Allen — filha da sua companheira, que viu crescer desde os dez anos de idade e face a quem, de uma forma ou de outra, se assumia como figura parental.

Em Allen v. Farrow, abrem-se as portas ao íntimo da família, através de testemunhos próximos, documentos, gravações de áudio e vídeo que nos deixam, ou deviam deixar, no mínimo, desconfortáveis. Se em 1992 a polémica em torno do caso não tardou, é um facto que, depois de adormecida por alguns anos, se estendeu até aos dias actuais. Embora a era #MeToo já tenha desmascarado nomes como Harvey Weinstein  cujos crimes foram, curiosamente, detalhados pela primeira vez numa investigação do jornalista Ronan Farrow, filho de Mia Farrow e Woody Allen, para a revista americana The New Yorker —, a desconfiança face às narrativas das vítimas de agressão sexual e às suas verdadeiras intenções, em especial das mulheres, permanecem visceralmente entranhadas no tecido social.

No que toca a Allen v. Farrow, este fenómeno é claro: dois pesos e duas medidas. Sobre as alegações, Allen mantém que tudo passa, nem mais nem menos, de um plano de Mia Farrow, que incutiu em Dylan uma falsa narrativa para se vingar do companheiro que a tinha trocado pela filha Soon-Yi. É esta versão que sempre fez questão de vocalizar desde o início, sendo acolhida e professada pelos seus apoiantes, como se de um evangelho se tratasse.

Na praça pública, Mia Farrow foi reduzida a uma histérica vingativa, mulher sem escrúpulos e mãe imprestável, possibilitando que apenas o lado de Woody Allen prevalecesse como a verdade não fosse este um génio e deus do cinema, livre de quaisquer pecados. Há um óbvio contraste entre a rapidez com que se demoniza uma mulher, com que se desvaloriza as alegações sérias de uma criança e a prontidão com que são tolerados os homens, sobretudo poderosos, e os seus comportamentos, mesmo que questionáveis e inapropriados. Ainda hoje, uma simples viagem pela internet revela as sórdidas opiniões acerca de Mia Farrow, o menosprezo quase total do testemunho de Dylan e o culto inquestionável em torno de Woody Allen, figura aparentemente inabalável. E o lado de Dylan Farrow? É como se durante anos tivesse deixado de existir e consigo também a sua versão. Até agora.

Teria a história de Dylan e Mia Farrow sido diferente se não tivéssemos caído no engodo habitual de pôr em causa quem tem coragem de quebrar o silêncio? Seremos nós próprios vítimas de figuras como Allen e de um culto de personalidade que impede de nos confrontarmos com a possível realidade de os nossos ídolos não serem quem idealizamos? “A verdade não importa, o que importa é aquilo em que acreditam”, terá proferido o realizador no decorrer do circo mediático que sucedeu às alegações de abuso sexual. Woody Allen que me permita discordar: a verdade importa. Que nos dispamos de idolatrias que nos cegam e de figuras que turvam o nosso julgamento. Que dêmos hipótese às mulheres, as ouçamos, assim como as crianças e as vítimas, mesmo que alegadas. Este pode bem ser o melhor caminho para a justiça e para a verdade.