Psicadélicos e Pandemia: parte II
A propósito do lançamento do www.safejourney.pt - uma plataforma digital sobre psicadélicos em Português, para portugueses.
Com que respostas podemos contar para lidar com os problemas de saúde mental? Aqui, como em toda a intervenção em saúde, promove-se mais e melhor quando se previne. Só que é sempre a prevenção, jamais prioridade, que mais sofre impacto durante a escassez. Então, quando esta está (ainda mais) comprometida, restam as respostas de ação direta sobre o problema, ali à nossa frente, em toda a sua imponência. Em saúde mental, essas respostas resumem-se a dois níveis: psicofarmacologia e assistência direta. Nesta última englobo o acompanhamento por serviços de psicologia, de psiquiatria e de outras especialidades, em centros de saúde, hospitais centrais, projetos comunitários, escolas, IPSS ou serviços privados. Ora, o que as pessoas que precisam mais desejam, é o momento em que têm à frente um profissional capaz e disponível para ouvi-las, por um período de tempo suficiente, e com uma frequência de encontro regular. Alguém que as conheça e que saiba como lidar com o impacto imediato do seu problema e que ajude a aliviar a sua progressão ao longo do tempo. A modalidade mais clássica deste acompanhamento é a psicoterapia. O cidadão comum tem a mesma dificuldade em compreender, com rigor, o que é a psicoterapia e quem são as pessoas que estão habilitadas para oferecê-la, como tem em aceder-lhe. Porque a psicoterapia – que às vezes é feita por psiquiatras que também podem prescrever psicofármacos - é um processo longo, complexo, de escrutínio difícil e caro, muito caro. Sei-o por várias vias e uma delas é a minha experiência pessoal. Porque num período da vida procurei psicoterapia. Uma oportunidade bestialmente positiva, entendam! Tive isso tudo. Durante 3 anos da minha vida, todas as semanas (ou pelo menos todas as semanas que eu pude pagar, e foram quase todas), tive essa dedicação por um profissional competente. Correção. Eu não podia pagar uma psicoterapia semanal durante três anos. Ninguém pode, arrisco-me, a não ser que goze de grande folga material. E esse não era o meu caso, apesar da minha posição, à primeira vista, privilegiada. Tinha e tenho um seguro de saúde que me pagava, na altura, seis sessões por ano. Eu, por ano, fiz quase cinquenta. O meu psicoterapeuta fazia-me um desconto – cobrava-me 50€ em vez dos 70€ habituais, que eu pagava sem hesitar. Preferia cortar na conta de supermercado porque precisava daquilo como “pão para a boca”...
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Com que respostas podemos contar para lidar com os problemas de saúde mental? Aqui, como em toda a intervenção em saúde, promove-se mais e melhor quando se previne. Só que é sempre a prevenção, jamais prioridade, que mais sofre impacto durante a escassez. Então, quando esta está (ainda mais) comprometida, restam as respostas de ação direta sobre o problema, ali à nossa frente, em toda a sua imponência. Em saúde mental, essas respostas resumem-se a dois níveis: psicofarmacologia e assistência direta. Nesta última englobo o acompanhamento por serviços de psicologia, de psiquiatria e de outras especialidades, em centros de saúde, hospitais centrais, projetos comunitários, escolas, IPSS ou serviços privados. Ora, o que as pessoas que precisam mais desejam, é o momento em que têm à frente um profissional capaz e disponível para ouvi-las, por um período de tempo suficiente, e com uma frequência de encontro regular. Alguém que as conheça e que saiba como lidar com o impacto imediato do seu problema e que ajude a aliviar a sua progressão ao longo do tempo. A modalidade mais clássica deste acompanhamento é a psicoterapia. O cidadão comum tem a mesma dificuldade em compreender, com rigor, o que é a psicoterapia e quem são as pessoas que estão habilitadas para oferecê-la, como tem em aceder-lhe. Porque a psicoterapia – que às vezes é feita por psiquiatras que também podem prescrever psicofármacos - é um processo longo, complexo, de escrutínio difícil e caro, muito caro. Sei-o por várias vias e uma delas é a minha experiência pessoal. Porque num período da vida procurei psicoterapia. Uma oportunidade bestialmente positiva, entendam! Tive isso tudo. Durante 3 anos da minha vida, todas as semanas (ou pelo menos todas as semanas que eu pude pagar, e foram quase todas), tive essa dedicação por um profissional competente. Correção. Eu não podia pagar uma psicoterapia semanal durante três anos. Ninguém pode, arrisco-me, a não ser que goze de grande folga material. E esse não era o meu caso, apesar da minha posição, à primeira vista, privilegiada. Tinha e tenho um seguro de saúde que me pagava, na altura, seis sessões por ano. Eu, por ano, fiz quase cinquenta. O meu psicoterapeuta fazia-me um desconto – cobrava-me 50€ em vez dos 70€ habituais, que eu pagava sem hesitar. Preferia cortar na conta de supermercado porque precisava daquilo como “pão para a boca”...
Um processo de psicoterapia é longo, portanto. Porque também demora muito tempo a tornarmo-nos doentes mentais. Por isso nos habituámos, e bem, a desconfiar das soluções mágicas, rápidas. Mas eu tenho mais informação do que o profissional “médio” de saúde mental. E, hoje em dia, questiono-me sobre os modelos que conhecemos (e ensinamos). É que há muitas respostas por obter. Desde logo: quando um acompanhamento começa, quanto tempo tardará até se atingirem resultados? É que esta ajuda, se tivermos recursos para suportá-la, pode arrastar-se por muitos anos da nossa vida.
Se não tivermos recursos para ajuda privada usaremos serviços públicos. Apesar do esforço incansável dos profissionais que trabalham nestes serviços eu sei que, infelizmente, por exemplo, uma criança ou jovem institucionalizada com graves problemas de comportamento pode receber, quem sabe, duas sessões de acompanhamento por mês. (Para que resultados fossem visíveis em tempo útil ao seu desenvolvimento, várias por semana não seriam demais). As marcações de psiquiatria distam meses entre si porque, uma vez fechado o diagnóstico, não têm outra missão que não o ajuste da medicação à evolução dos sintomas. E não me arrisco a estimar quantos utentes tem a seu cargo um colega da psicologia ou da psiquiatria num centro de saúde... Nesta escassez pré-pandémica, sobra a medicação — o paliativo mais eficaz e o recurso mas económico e universal para a maioria dos sintomas, se comparado com outras modalidades que dependem da relação terapêutica. (A tal que é tão difícil, e cara). É fácil estimar o que acontecerá no pós-pandemia às taxas de prescrição de psicofármacos — já eram astronómicas. Não me ocorre adjetivação que torne mais vívido o que nos espera. Seremos uma sociedade intoxicada, encharcada em psicofármacos.
Os resultados disponíveis mostram que a ciência psicadélica pode ter efeitos muito significativos com uma única sessão com recurso a psicadélicos, aliviando sintomas de vários diagnósticos e aumentando bem-estar e qualidade de vida, contando que seja garantida atenção a algumas etapas. Nessa psicoterapia breve contam-se algumas sessões de preparação, a sessão da experiência propriamente dita, e algumas sessões de integração posterior. Em casos excepcionais pode ser útil uma sessão de reforço com a substância, que não é a regra. Essa intervenção supera, amplamente, o nível cognitivo, mental que se tornou o foco quase exclusivo da maioria dos modelos em que se baseia a intervenção psicológica na atualidade. O trabalho dos psis tem estado a ignorar a relação com o corpo, com os afetos, com a espiritualidade, arrisco. Porque está por demais limitado às crenças, pensamentos e cognições que condicionam os nossos comportamentos, como se fôssemos só isso. Não somos. E a informação que a psicoterapia psicadélica parece trazer coloca todos os planos de que é feito o ser humano ao mesmo nível e, potencialmente, ao alcance da consciência. Essa sessão pode ser apenas o levantar da cortina que inaugura um caminho mais longo e profundo. Mas também pode ficar só por aí — pelo potencial alívio, imediato e duradouro, do sofrimento mental.
Hoje em dia, então, essa evidência já existe. E o escrutínio a que está sujeita é muito mais exigente do que se aplica aos modelos conhecidos e aceites. Esses abrandaram muito no esforço de mostrar resultados. Com a psicoterapia psicadélica dá-se o inverso porque, com todo o estigma e aversão que rodeiam a ingestão deliberada de substâncias (drogas...) que alteram a consciência, é sujeita à maior das pressões para mostrar evidência robusta.
Urge, então, que saibamos desta possibilidade. Urge que o saibam os profissionais de saúde mental, os decisores políticos, os gestores de serviços de saúde e todos os responsáveis máximos que terão de decidir como gerir recursos com eficiência e humanismo, sempre, e sobretudo nos tempos que nos esperam. Urge que o saiba o cidadão comum, que tem direito a ter esperança e a confiar que também lhe é destinado o melhor e o mais inovador que a ciência tem para oferecer - para poder reclamá-lo, para ter o poder de fazer perguntas e de exigir soluções melhores.
Este conhecimento tem andado num circuito muito fechado. A informação abunda e circula nas redes dos investigadores e dos curiosos que apregoam, entusiasmados, cada novo avanço. Mas é tímida na hora de chegar ao grande público, que é a quem verdadeiramente interessa fazer chegar este manancial de descobertas. Tem sido muito difícil saltar para fora desse circuito elitista e hermético dos canais sobre os avanços da ciência psicadélica. Mas com a plataforma www.safejourney.pt — Psicadélicos em Português temos hoje capacidade de contrariar de forma continuada, rigorosa e eficaz essa lacuna. Deixa de haver desculpa. Num mesmo sítio estão reunidos, traduzidos e partilhados os melhores contributos, os mais atuais, os mais relevantes, os que maior e melhor evidência encerram. Estão as entrevistas aos agentes que têm procurado contribuir da forma mais consistente e inovadora para o avanço deste recurso. Estão as notícias mais recentes e os testemunhos mais vívidos. É possível fazê-lo assim agora, entre nós, porque abundam os exemplos de outros países que têm investido nessa divulgação, em que que os criadores do SafeJourney se inspiraram e aliaram para tornar esta missão possível.
Apesar de todos os avanços, num movimento que nem a pandemia conseguirá interromper, sei que estamos muito longe de uma integração segura, socialmente justa e sustentável dos psicadélicos no nosso sistema de saúde. Mas está dado um passo fundamental do qual já não há retorno porque a ignorância deixa de ser desculpa. É por esse motivo que expresso a minha gratidão aos fundadores e fundadoras do SafeJourney e a todos e todas que começaram já a contribuir para mudar a relação da sociedade portuguesa com os psicadélicos.
A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico