“Os portugueses têm tido um comportamento fantástico”, mas é preciso prudência
A psicóloga clínica Margarida Gaspar de Matos, que irá coordenar a task force que vai estudar o comportamento dos portugueses em relação à pandemia, diz que os casos de incumprimento das regras são uma minoria. “Temos que valorizar o esforço que toda a gente tem feito, mas também temos que estar atentos”, alerta.
A psicóloga clínica e da saúde Margarida Gaspar de Matos, especializada em jovens e professora catedrática na Faculdade de Motricidade Humana da Universidade de Lisboa, irá coordenar a task force que vai estudar o comportamento dos portugueses em relação à pandemia, cujo despacho foi publicado esta sexta-feira em Diário da República. Há algumas semanas, a especialista foi uma das signatárias de uma “carta aberta” a favor do desconfinamento. Agora, em entrevista ao PÚBLICO, faz um balanço do comportamento dos portugueses durante este ano, assim como destes primeiros dias de desconfinamento – e mostra-se expectante em relação ao futuro.
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A psicóloga clínica e da saúde Margarida Gaspar de Matos, especializada em jovens e professora catedrática na Faculdade de Motricidade Humana da Universidade de Lisboa, irá coordenar a task force que vai estudar o comportamento dos portugueses em relação à pandemia, cujo despacho foi publicado esta sexta-feira em Diário da República. Há algumas semanas, a especialista foi uma das signatárias de uma “carta aberta” a favor do desconfinamento. Agora, em entrevista ao PÚBLICO, faz um balanço do comportamento dos portugueses durante este ano, assim como destes primeiros dias de desconfinamento – e mostra-se expectante em relação ao futuro.
Qual o trabalho que esta task force vai desenvolver? Como é constituída?
Nós somos cientistas de comportamento. Há alguns psicólogos, um antropólogo, um médico e, no nosso dia-a-dia, analisamos o que é que faz com que as pessoas em geral adoptem ou não determinados comportamentos e como é que as podemos ajudar a protegerem a sua saúde e o seu bem-estar. Não só os comportamentos das pessoas, mas como é que havemos de transformar os ambientes, as ruas, as instituições de maneira a serem mais amigáveis para o comportamento do cidadão.
Vamos fazer esse trabalho de fundo ao longo destes meses até Dezembro para depois elaborar propostas de boas práticas e de políticas públicas para que, numa próxima vez em que haja uma crise sanitária, haja uma maneira ágil de activar um conjunto de recursos para uma protecção do cidadão e uma implementação imediata de políticas públicas na área da saúde, da educação, da segurança social, etc.
Há várias equipas que estão a recolher vários indicadores e nós vamos tentar não repetir esforços e ouvir pessoas da área da virologia e da epidemiologia para conseguirmos criar sinergias e até analisar as experiências noutros países. Iremos acompanhar este processo [de desconfinamento] que vamos ter nas próximas semanas e ver até que ponto é que alguma coisa falha para tentar actuar logo.
Por outro lado, uma das coisas do nosso mandato tem a ver exactamente com o melhor modo de comunicar com as pessoas, nomeadamente do ponto de vista técnico em termos de publicidade, das campanhas e das mensagens que melhor chegam ao público.
Mas nós não temos poder executivo. A responsabilidade política da implementação das medidas é inteiramente do Governo, como não podia deixar de ser.
Como classifica o comportamento dos portugueses em relação à pandemia?
Eu acho que os portugueses têm tido um comportamento fantástico no geral.
Às vezes, a televisão e a comunicação social denunciam alguns casos e nós vemos muita gente na rua, muita gente junta ou sem máscara, mas na verdade acaba por ser uma minoria. Não quer dizer que essa minoria não possa ser um grande foco de contágio, mas nós não podemos com isso dizer que os portugueses são irresponsáveis porque isso também leva a uma grande desmoralização.
Estamos todos em casa desde Março do ano passado, todos fechados e a sofrer imenso e cheios de vontade de ir para a rua. Temos que valorizar o esforço que toda a gente tem feito, mas também temos que estar atentos porque as pessoas podem começar a relativizar e a esquecerem-se de levar máscara e de lavar as mãos quando chegam a casa e de usar o álcool-gel e nós temos então que passar mensagens de apelo e lembrar as pessoas que isto ainda não está resolvido.
Acho que isso tem de ser feito através de uma insistência para manter os comportamentos [e cuidados], mas também com alguma empatia pelo esforço colectivo que está a ser feito neste país.
Qual o balanço que faz destes primeiros dias de desconfinamento?
Do ponto de vista da epidemia, não podemos fazer ainda nenhum balanço porque só para a próxima semana é que vamos começar a ver o que é que aconteceu. Neste momento, estamos com indicadores confortáveis — comparado com os outros países e com o que já tivemos — e, portanto, isto é uma medida que é necessária e que tinha que ser tomada.
Eu estou confiante, mas à medida que vamos ficando confiantes no desconfinamento sem agravamento das infecções, como nós esperamos que aconteça pelo menos agora nestes primeiros dias, as pessoas podem entrar num certo optimismo irrealista.
Como é que se gere a incerteza e o bem-estar das pessoas e a importância da protecção individual e da promoção da saúde pública?
Temos que ter um discurso de entusiasmo e de confiança, mas muito prudente. Por isso é que a comunicação é importante. Se nós temos uma comunicação muito destrutiva e as pessoas já estão um bocado cansadas e desmoralizadas, se nós as vamos mandar ainda mais para baixo isso dá uma grande desmotivação e desmoralização a nível nacional, europeu ou até mundial.
Mas se nós começamos a ter um discurso demasiado positivo, as pessoas também podem aligeirar demasiado. Cada um de nós pensa que é só um mas nós somos muitos milhões e depois o resultado final pode ser dramático. Por isso, também não podemos ter um discurso muito eufórico porque estamos todos em risco e esperamos não ter uma quarta vaga, mas há países que já lá estão a chegar.
Por outro lado, aquele discurso culpabilizante e centrado apenas no negativo, além de ser desmoralizante, não tem um resultado a longo prazo. Eu penso que o melhor é passar uma mensagem simples, mas que tenha a equação toda.
Acha que era imperativo abrir as escolas?
Há duas ou três semanas, assinei uma “carta aberta” para dar um incentivo ao Governo para abrir as escolas. Porquê? Porque realmente nós não podemos ficar fechados em casa para sempre.
As questões da irritabilidade, da ansiedade e da depressão estão a aumentar nas crianças e adolescentes em termos gerais, agora imagine o que acontece naquelas crianças com riscos psicossociais que estão a ser expostas diariamente a famílias complicadas. Uma coisa é ter uma casa em que cada um está na sua divisão, tem um computador e depois juntam-se todos para almoçar, mas depois há outros que, se não comem a comida da escola, não têm nada para comer e estão em casa expostos a violência e a abuso por parte até de familiares numa altura em que as comissões de protecção também não estão a 100%.
A prudência não é “quanto mais, melhor” porque ter as crianças em casa tem outros riscos em termos da saúde, do seu bem-estar e saúde mental. Não é inócuo ficarmos mais tempo em casa só por uma questão de protecção.
Como encararam as crianças o regresso à escola?
Quando recomeçamos a escola em Setembro, os miúdos não se sentiram inseguros nem capazes de apanhar o vírus, mas sentiram que o regresso à escola não foi aquela expectativa e aquele sonho que eles tinham acalentado durante os meses em que estiveram confinados em casa.
Nós temos uma rede de jovens pelo país todo que activamos, de vez em quando, para nos darem opiniões e fizemos três estudos e percebemos que no primeiro confinamento os miúdos — tirando o primeiro ou segundo dia em que estavam completamente eufóricos porque tinham uns dias de férias — começaram-se a ajustar e descrevem coisas negativas como, por exemplo, não verem os amigos e não irem às actividades desportivas e de lazer habituais.
Mas também falam em coisas muito interessantes como sentirem-se crescer e mais autónomos e mais responsáveis na gestão da sua escolaridade. Não têm aquela carga toda, não chegam a casa exaustos e isso acho que é algo que devíamos reter e com o qual aprender.
Outra coisa que os miúdos diziam é que os professores deviam aprender a trabalhar com as novas tecnologias. Temos que repensar a educação com estas tecnologias e com este século XXI e conseguirmos aceitar sair da nossa zona de conforto e fazer coisas diferentes, aproveitando o que aprendemos com esta pandemia.
Um miúdo dizia-me: “Eu cheguei lá todo contente e havia aquelas coisas chatas da higienização, mas nós percebemos que tem que ser, que temos que usar máscara e comer separados. O que eu não percebo é que o professor ainda não tinha dito ‘bom dia’ e já tinha marcado os testes todos para o período”. Eles sentiram-se defraudados.
É evidente que estou a ser injusta para milhares de professores pelo país todo e é bom que se diga que os professores foram fantásticos e ultrapassaram-se ao longo desta pandemia. Mas, se calhar, temos uma oportunidade para fazer ainda melhor e para os professores conseguirem agora, por exemplo, quando receberem as crianças do 2.º, 3.º ciclos e secundário, ganharem — não digo perderem — 20 minutos para ouvirem os miúdos.
A aprendizagem é importante mas, desde que a gente sobreviva, há tempo e estratégias para a recuperação académica. A escola vai certamente tratar muito bem deles do ponto de vista do contágio, já vimos isso em Setembro, mas também temos que parar para tratar do seu bem-estar porque senão temos crianças não contagiadas mas um bocadinho infelizes com a vida.
Já se passou um ano desde o primeiro confinamento. Qual o impacto que isto pode ter na infância de uma criança?
Se tiver 50 anos, [um ano] é um quinquagésimo da sua vida, mas se tem cinco anos é um quinto e, portanto, é muito tempo. Os miúdos quase que já nem se lembram de como era antes e há crianças que nunca viram ninguém que não os pais sem máscara. Temos que restaurar também a confiança e o bem-estar dos miúdos e que os ouvir falar das coisas e acompanhar o que são os receios deles de agora andar na rua, de estar uns com os outros. Essa é a melhor maneira de ficarmos a saber o que acontece.
Numa conversa, um miúdo adolescente dizia-me: “Eu não me importava se eu soubesse que era mais uma semana ou mais duas. É esta incerteza que me mata, eu não saber quanto tempo é que isto vai durar.”
E depois ainda há o facto de haver miúdos que já perderam a viagem de finalistas, o baile de finalistas, o namoro que tinham e há [experiências] perdidas que são típicas de certas idades de desenvolvimento. Realmente nós temos que os ouvir e perceber quais são os miúdos que estão angustiados normalmente, inquietos ou um bocadinho saturados e aqueles em que isso já vai além dessa natural chatice e saturação e remeter esses casos para o psicólogo da escola ou dos cuidados de saúde primários para ver se conseguimos sair desta o mais saudáveis possível.
A ansiedade e a incerteza são um problema?
A ansiedade, por definição, é mesmo a medida da nossa incerteza e, portanto, quando temos mais incertezas obviamente que ficamos mais ansiosos. Se tem a certeza que lhe vai acontecer uma coisa má não fica ansiosa, fica horrorizada. A ansiedade é aquela coisa que diz “talvez” e, por exemplo, há muitos jovens que estão a resistir a sair [de casa].
Mas daqui para a frente nós, técnicos de saúde, temos que estar atentos às pessoas que têm desequilíbrios e que realmente não estão a conseguir ajustar tudo. Por exemplo, pessoas que tenham agorafobia, que é o medo de espaços abertos, de sair à rua, agora que estão fechadas em casa há imenso tempo ainda mais vão ter.
Acho que isto, no fundo, é um desafio que nós estamos a viver em primeira mão.
Quais as principais lições a retirar deste ano de pandemia?
Algo que eu achei fascinante é que os miúdos e os graúdos também conseguiram retirar coisas boas disto e a capacidade de as pessoas se ajustarem às circunstâncias numa situação inédita para todos.
Por exemplo, os miúdos sentem que no primeiro confinamento estavam muito activados para arranjar formas alternativas de estarem juntos e agora neste segundo confinamento estavam muito mais individualistas, à espera que passe e muito mais fechados em casa. Agora vai ser uma revolução cultural voltar à escola, à faculdade, voltar à rua, voltar a tomar um café numa esplanada.
O que era muito interessante era conseguirmos fazer uma listagem do que foi bom e tentar mantê-la. Aquele esforço que nós fazíamos para não estar sempre com o nariz no computador, comer saudável, ir dar uma volta, telefonar aos amigos, manter essas coisas. Acho que mantermos algum usufruto pela vida e pelo nosso bem-estar, uma espécie de autocuidado, era algo que nós podíamos manter. E depois realmente mandarmo-nos para a vida.
Vai ser um desafio para mim como cientista de comportamento ver a mudança cultural que nós vamos ter ao longo do próximo ano. Eu estou genuinamente expectante pelo futuro. Estou mais expectante do que receosa.
Qual a mensagem que deixa aos portugueses neste início de desconfinamento?
Manter expectativas positivas e confiança não só nas instituições como na coesão social, mas uma confiança muito prudente e passinho a passinho porque senão isto é realmente muito desgastante. Quantas mais vezes tivermos que voltar para casa, mais vezes ficamos destroçados.
Vamos aprendendo coisas enquanto país e agora vamos ter que sair — como está a ser feito — devagarinho e com toda a prudência, esperando mesmo ter sido a última vez (pelo menos por agora).