As nossas crianças, as outras e as que estão longe
Enquanto não nos comprometermos com o respeito pelos direitos de todas as crianças não podemos sonhar com um futuro melhor, mais pacífico, justo e próspero.
Quem trabalha na proteção infantil ouve demasiadas vezes a expressão “crianças/jovens difíceis” por oposição às crianças ditas “normais”. As crianças “normais” são as “nossas”, as que temos lá em casa, as que vivem com a sua família em apartamentos ou vivendas e têm pais que trabalham e cuidam delas devidamente. As “outras“, vivem em bairros degradados ou em casas de acolhimento, vieram de países africanos ou são de outra etnia, têm problemas de absentismo escolar, não cumprem regras, são “maluquinhas”, têm “ataques”, são atrasadinhas ou deficientes, andam na droga...
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Quem trabalha na proteção infantil ouve demasiadas vezes a expressão “crianças/jovens difíceis” por oposição às crianças ditas “normais”. As crianças “normais” são as “nossas”, as que temos lá em casa, as que vivem com a sua família em apartamentos ou vivendas e têm pais que trabalham e cuidam delas devidamente. As “outras“, vivem em bairros degradados ou em casas de acolhimento, vieram de países africanos ou são de outra etnia, têm problemas de absentismo escolar, não cumprem regras, são “maluquinhas”, têm “ataques”, são atrasadinhas ou deficientes, andam na droga...
As nossas, clarinhas e tão amadas, é claro que se faltam a uma aula de vez em quando (quem nunca o fez!) é porque os professores não sabem tornar a escola um espaço interessante e não as cativam devidamente, testam limites (o que é saudável!), têm fases, crises e problemas psicológicos (nada que não passe com o tempo ou que não se resolva com a ajuda de um bom psicoterapeuta!), lutam contra a dependência de substâncias, por vezes não se controlam e deixam a sua raiva sair (ainda bem que o fazem porque engolirem o seu mal estar pode ser prejudicial!), são criativas, fantasiosas e imaginativas, precisam que quem as ama lhes dedique tempo de qualidade, exigem que os adultos respeitem a sua intimidade e privacidade, comparam-se com o grupo de pares e sofrem quando não possuem o telemóvel de último modelo ou as sapatilhas da marca XPTO, dominam a internet e a informática (o que é importantíssimo para o seu futuro!), reagem contra as tentativas de hiperprotecção e exigem a sua liberdade, mesmo mantendo-se económica e emocionalmente dependentes até aos 30 anos (ainda são jovens!).
“As outras” são diferentes: não respeitam ninguém, estragam tudo, desprezam quem as protege, são violentas, fogem, são manipulativas, só querem chamar a atenção, são mentirosas, são viciados em computadores e jogos digitais inúteis, são ingratas e mordem a mão de quem lhes dá de comer. Não merecem o dinheiro que o Estado gasta com elas. Antigamente não eram assim! Eram humildes e reconhecidas. Agora, o facto de terem passado por maus-tratos e abusos parece dar-lhes o direito de terem direitos!
E depois há as que se afogam na travessia do mediterrâneo, entregues a si próprias em campos de refugiados, bombardeadas na Síria, a morrer de fome no Sahel, obrigadas a ser soldados no Afeganistão, a prostituírem-se na Tailândia, a serem assassinadas na província de Cabo Delgado, no Norte de Moçambique... Terão sequer o direito de ainda serem chamadas crianças?
Enquanto não nos comprometermos com o respeito pelos direitos de todas as crianças não podemos sonhar com um futuro melhor, mais pacífico, justo e próspero. As crianças são o amanhã. O que as crianças vivem e sofrem hoje vai moldar muito do que o mundo será daqui a uns anos, incluindo a forma como viveremos a nossa velhice. Mas não há crianças de primeira, de segunda ou de terceira. Só quando as crianças virem os seus direitos respeitados em qualquer lugar do nosso planeta se tornará possível construir um mundo melhor. A responsabilidade de garantir às crianças, a todas as crianças, o direito à vida, à alimentação, a cuidados de saúde (incluindo de saúde mental), à educação, ao brincar, a sonhar, ao amor de uma família, à participação é, tem de ser, de todos nós.