O tempo tem tanto tempo quanto tempo o tempo tem
O mundo que se conta a partir do que se diz.
“A pandemia pode ser uma oportunidade para nos entregarmos ainda mais ao presentismo, acelerando a transição para uma condição digital ou, antes pelo contrário, pode permitir-nos dar um passo atrás, em direcção ao passado e em direcção ao futuro.” François Hartog, historiador francês
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“A pandemia pode ser uma oportunidade para nos entregarmos ainda mais ao presentismo, acelerando a transição para uma condição digital ou, antes pelo contrário, pode permitir-nos dar um passo atrás, em direcção ao passado e em direcção ao futuro.” François Hartog, historiador francês
O tempo com pouco tempo
O mundo que nos trouxe até à pandemia fez-se distorcendo o tempo, alargando o presente e quase fazendo desaparecer o passado e o futuro. A manchete do PÚBLICO sobre os ataques do 11 de Setembro dizia “o atentado que mundo o mudou” e esse dia tão importante que parecia ter um efeito tão perturbador parece hoje tão longínquo que já não sabemos se o mundo realmente mudou alguma coisa nesse dia. Tudo era tanto e, passados 20 anos, parece tão pouco. Como diz o historiador francês François Hartog, especialista no tempo que acaba de publicar em França Chronos: L’Occident aux prises avec le Temps, aceleramos tanto a percepção do tempo que “chegou a um ponto em que [este] parece ser o seu próprio movimento”. O eterno presente, sem passado, nem futuro, aquilo a que a filosofia do tempo chama o presentismo. Como refere Hartog, enquanto o presente cristão era uma transição entre a vida quotidiana e a vida eterna, o presente contemporâneo “é como uma bolha que nos envolve”. Viver sempre no momento, imenso, veloz, multiestimulante, que perturba a reflexão: agir, reagir, sem espaço para reflectir. Encerrados nessa condição, não nos permitimos aprender com os erros, dar um passo atrás e perceber em que medida os equívocos do passado nos podem ajudar nas escolhas do presente; de que forma podemos mudar para que o futuro não seja uma repetição mais acelerada ainda do que estamos a viver? Quando estava a acabar de escrever Chronos, em plena pandemia, Hartog anotou: “O confinamento, única resposta de que dispomos para travar a propagação do vírus, introduz um tempo inédito que é uma suspensão do tempo.” Resta saber se esse tempo veio para ficar.
O tempo sem tempo
Ainda há espaços assim no planeta que, de tão isolados, inventaram outro tempo. O do relógio primevo da natureza, de luz e sombra, de marés, de estações definidas e de rotinas mais que horários. Nas ilhas Kerguelen, ponto minúsculo no extremo Sul do Oceano Índico, só uma estação científica francesa mantém presença humana numa terra onde o vento sopra, quase eterno. “Vivemos no momento presente. Tudo é tão cativante que é difícil de retribuir. Estamos o tempo todo com outras pessoas. Acabamos por não ter tempo. Dar notícias é um esforço imenso, estamos sempre descompassados.” Quem o conta à France 3 Bretagne é uma engenheira que passou 13 meses a trabalhar nas Kerguelen. Regressou a 31 de Dezembro, mas ainda não sabe o que fazer da vida. A experiência deixou-a com a cabeça às voltas: “Preciso de um pouco de tempo.” Depois de se sentir “privilegiada” por ter estado “lá em baixo”, naquela imensidão de mar a caminho do Pólo Sul, na base do Porto dos Franceses, na ilha maior do arquipélago, a que se chegou a chamar da Desolação e hoje tem por nome Grande Terra, não se pode voltar de repente ao tempo da correria ocidental sem, pelo menos, um período de adaptação. Mesmo na Bretanha, nesse departamento que se chama de finisterra, no extremo ocidental da França continental, com o mar logo ali, Emilie ainda precisa de processar o seu regresso ao tempo terreno. Lá em baixo, “sentimo-nos na abóbada celestial”.
O tempo de lembrar
Muita da gesta heróica da construção mítica das nações seria hoje considerada crime contra a humanidade de acordo com o Tribunal Penal Internacional (TPI). Os olhos moralizadores ocidentais deste tempo não teriam mãos a medir com tanto massacre. A história é uma ficção disfarçada de verdade. Entre 1878 e 1885, na sua celebrada Campanha do Deserto, o exército argentino dizimou todos os povos indígenas que lhe apareceram pela frente, só para poder entregar essas vastas terras conquistadas da Pampa e da Patagónia a grandes latifundiários. Ainda hoje, o general Roca, que comandou as forças, é nome de cidade na Patagónia e de ruas por todo o país. E nesse domínio, poucas nações podem jogar a primeira pedra. Joe Sacco, o jornalista que escreve e desenha as suas reportagens e as transforma em novelas gráficas, publicou o ano passado Paying the Land. Se quiséssemos lembrar-nos hoje de países com menos probabilidade de acabar investigados pelo TPI, o Canadá estaria entre eles. E, no entanto: “Quando fui para Canadá pensava que seria uma história linear, mas, claramente, era muito mais complexa que isso. Apercebi-me que era uma história de colonialismo e de como, se queres extrair os recursos de uma terra, tens que controlar as pessoas que habitam essa terra.” O povo Dene, uma das chamadas primeiras nações do Canadá, que diz ser propriedade da terra e não ao contrário, viveu nómada durante séculos do que a natureza lhe oferecia. Até se descobrirem as riquezas no subsolo dessa terra que era deles, mas não lhes pertencia. A exploração que drogou, embebedou, violentou o povo Dene “contrasta com o que se perdeu com o tempo pela interferência de um governo – um governo que muitos de nós pensamos ser benigno – que quer o que está nessa terra.”
O tempo de prever
No seu último livro, The Ministry of the Future, Kim Stanley Robinson imagina um futuro que tenta ser uma evolução lógica do tempo que vivemos agora. E começa com milhões de pessoas a morrer por uma onda de calor na Índia. “Foi difícil de escrever e tive medo. Não é que não tenha escrito outras vezes sobre as partes obscuras da História, mas isto ia muito para lá do obscuro. O problema é que poderia acontecer, muito facilmente”, afirma o escritor numa entrevista ao site da revista La Marea. O presente está cada vez mais cheio de exemplos do que o futuro nos reserva por causa das alterações climáticas. Provas reais e concretas de desastres acontecidos, a acontecer neste momento ou em vias. E, mesmo assim, há quem se dê ao luxo de negar o tangível, de desestimar o que se lhe apresenta em frente aos olhos e por razões gananciosas do agora pôr em causa o que está por vir. Bernardo Esteves, repórter de Ciência da revista Piauí, tem um podcast sobre temas científicos que se chama A Terra é Redonda. Um nome que há 20 anos seria ridículo por obviedade e que hoje se tornou uma necessidade devido aos avanços dos fanáticos religiosos, dos oportunismos populistas, dos defensores do criacionismo que querem equiparar uma teoria estapafúrdia ao ensino da Ciência. Todos estes contemporâneos que negam os ensinamentos do passado e relativizam as previsões do futuro, que no seu afã antivacinas ameaçam o nosso futuro com doenças que pensávamos ter deixado ficar no passado, são, também eles, sem que se apercebam, produto deste presente, tentando travar a aceleração desumana deste tempo, em que o progresso se satisfaz a si mesmo e o ser humano se vai sentindo descartado por obsolescência.