Harry e Meghan: preocupação com a cor da criança é comum nas relações inter-raciais, dizem activistas
As discriminações são várias e vão da componente amorosa à laboral. Conversámos com três mulheres que não estranharam as revelações feitas pelos duques de Sussex durante a entrevista a Oprah Winfrey.
As recordações de Meghan Markle sobre uma observação feita por um membro da família real britânica sobre a possível tonalidade da pele do seu filho não constituem uma novidade para as mulheres negras. O PÚBLICO esteve à conversa com três mulheres portuguesas sobre a entrevista da duquesa de Sussex e do príncipe Harry e as questões racistas nela levantadas. Paula, Myriam e Beatriz já viveram na pele diversas situações de discriminação e conhecem outras mulheres que passaram pelo mesmo.
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As recordações de Meghan Markle sobre uma observação feita por um membro da família real britânica sobre a possível tonalidade da pele do seu filho não constituem uma novidade para as mulheres negras. O PÚBLICO esteve à conversa com três mulheres portuguesas sobre a entrevista da duquesa de Sussex e do príncipe Harry e as questões racistas nela levantadas. Paula, Myriam e Beatriz já viveram na pele diversas situações de discriminação e conhecem outras mulheres que passaram pelo mesmo.
Beatriz (nome fictício) tinha 18 anos quando começou um relacionamento inter-racial. Vivia numa pequena localidade, onde ela e os restantes familiares eram os únicos negros. Aquilo que no início poderia parecer uma relação saudável, não o foi. As desavenças começaram quando a mãe do namorado soube do relacionamento. “Não imaginava que isso me fosse acontecer, mas quando a mãe desse meu ex-namorado soube que eu era negra ameaçou matar-se se ele não acabasse o namoro”, recorda.
A relação acabou por sair prejudicada. “A mãe dele fez várias ameaças, tudo antes de me conhecer”, lamenta, acrescentando ainda que “namorar com uma preta era uma vergonha para aquela família.” Beatriz, agora com 33 anos, caracteriza essa experiência como “uma violência enorme”, “traumatizante” e, ao mesmo tempo, “a primeira experiência de racismo completamente assumido e sem medos”.
A partir daí, “as expectativas eram sempre muito baixas”, diz. O episódio fez despertar em Beatriz não só um sentimento de medo, mas também de desconfiança. “Depois disso, acabamos por fazer vários questionamentos”, refere. Beatriz dá alguns exemplos: “Esta pessoa está comigo, mas entende a minha realidade?”; “será que está comigo apenas porque me ‘hipersexualizou’ e tem esta ideia da pessoa negra como um corpo sexual apenas?”; “será apenas pelo meu exotismo?”
Mas as “violências” (como lhes chama) não ficam por aí. Ao longo da vida, Beatriz ouviu diversos relatos de ex-companheiros, que partilhavam com ela as pressões da família. Era muito comum os pais fazerem-lhes perguntas como: “quando é que vais acabar com essa negra?” ou “já te divertiste? Então agora acaba com isso”, sem antes a tentarem conhecer. “Era simplesmente por eu ser negra”, indica.
Coragem para falar
Com todos os exemplos de discriminação que sofreu e que ouviu de conhecidos e amigos, Beatriz diz não ter ficado chocada com a acusação de racismo feita à casa real britânica. “Era mais do que previsível, eles [Meghan e Harry] tiveram a coragem de falar publicamente e de dizer as verdades. Tenho muitos relatos de muitas mulheres que estão em relações inter-raciais e que na hora de ter os filhos há sempre um questionamento, principalmente da família branca sobre de que cor vai ser a criança”, sustenta.
Também a jornalista Paula Cardoso, portuguesa nascida em Moçambique, concorda que a realidade que Meghan experienciou é “um questionamento muito próprio de relações inter-raciais em que uma das pessoas é negra”. Afinal, “a gravidez é uma das etapas mais desafiantes do relacionamento inter-racial”, explica a também criadora do site Afrolink — projecto que reúne centenas de perfis profissionais tendo o objectivo de promoção “da representatividade negra no mercado profissional”, como a própria explicou ao PÚBLICO em 2020.
“Existe uma preocupação em relação à cor que a criança terá, como se uma cor mais escura fosse menos adequada, menos bonita, menos aceitável e em alguns contextos até sinal de vergonha”, completa Paula Cardoso.
"Há uma tentativa de desumanização” de Meghan
Para Myriam Taylor, empresária e activista pelos direitos humanos, a entrada de Meghan na casa real em 2018 constituiu uma “disrupção” no seio daquela família. “Estamos a falar de uma família que tenta manter a tradição e a tradição não passa por incluir pessoas diferentes do scope [padrão] da família”, defende. A empresária, criadora da marca Muxima, lembra que “o ADN da família real é ordinário, é igual ao de todos os outros comuns mortais”.
Nesse contexto, houve desde o início uma “desumanização” de Meghan Markle, concordam Myriam Taylor e Paula Cardoso. “Aquela relação foi contaminada desde o início e isso é bastante revelador dos sistemas estruturalmente racistas em que vivemos. Há toda uma tentativa, muito por parte da imprensa, em retratar Meghan de determinada forma, há uma tentativa de desumanização, de que ela é a vilã desta história como se ela não tivesse uma existência de mulher empoderada antes disso”, reflecte Paula Cardoso.
Para Myriam Taylor, essa desumanização acontece mesmo “dentro da comunidade à qual Meghan pertence”, ou seja, no seio da família real porque “não é olhada com um sentimento de pertença”. “Fomos todos desumanizados lá atrás, ainda durante a escravatura e nunca houve um trabalho de desconstrução dessa estrutura. Parece que ainda vivemos nessa hierarquização de raças”, remata.
"Esperam determinada pessoa em função do nome"
A empresária vai mais longe e recorda que esse tipo de hierarquização é algo latente na sociedade desde há séculos. Por isso, não se limita ao contexto amoroso e diz igualmente respeito a questões profissionais, uma vez que “as pessoas negras foram desprovidas de inteligência no imaginário colectivo”, diz.
Myriam Taylor recorda um episódio que lhe aconteceu num dia em que ia ter para uma reunião com um cliente. “Quando cheguei, disse que vinha para a reunião marcada para aquela hora e a secretária da pessoa perguntou-me a que horas chegava a minha patroa Myriam Taylor”, lembra. A empresária acrescenta ainda que “as pessoas espantam-se com a inteligência ou com o conhecimento e esperam determinada pessoa em função do nome e do imaginário delas”.
Os exemplos de discriminação e de racismo são vários e começam em coisas simples que muitas vezes nem os próprios intervenientes se apercebem. “Já ouvi coisas como ‘mas tu para mim nem és negra’ e as pessoas pensam que isto é um elogio”, continua Myriam Taylor, rematando que é “orgulhosamente negra”. “Não sou outra coisa senão uma mulher negra, claro que sou.”
Texto editado por Bárbara Wong