Shakespeare tinha mesmo ar de talhante enfatuado

Novas investigações sugerem que o busto que decora o seu túmulo terá sido encomendado pelo dramaturgo e esculpido por um artista que o conheceu em vida.

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Que um actor medíocre, filho de um fabricante de luvas e conselheiro municipal de Stratford-upon-Avon, tenha podido ser o escritor mais genial que a espécie humana alguma vez produziu é algo que sempre suscitou reservas e ressentimentos, dando origem a uma profusão de candidatos alternativos a autores das suas peças e poemas, do filósofo Francis Bacon ao dramaturgo Christopher Marlowe ou ao 17.º conde de Oxford, Edward de Vere, para citar apenas algumas das teorias mais populares.

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Que um actor medíocre, filho de um fabricante de luvas e conselheiro municipal de Stratford-upon-Avon, tenha podido ser o escritor mais genial que a espécie humana alguma vez produziu é algo que sempre suscitou reservas e ressentimentos, dando origem a uma profusão de candidatos alternativos a autores das suas peças e poemas, do filósofo Francis Bacon ao dramaturgo Christopher Marlowe ou ao 17.º conde de Oxford, Edward de Vere, para citar apenas algumas das teorias mais populares.

Mas se William Shakespeare (1564-1616), o autor, foi realmente quem parece ter sido na sua vida civil, que ao menos a sua aparência física nos desse algum sinal da sua excepcionalidade. Infelizmente, as duas únicas representações visuais do bardo que indiscutivelmente o retratam, ambas até agora consideradas póstumas, não são particularmente lisonjeiras. Uma gravura que surge na primeira compilação impressa das suas peças, o chamado First Folio, publicado em 1623, dá-nos a ver um sujeito semi-calvo com uma cabeça algo desproporcionada e que parece ter sido mal colada aos ombros. Crê-se que o retrato seja do gravador flamengo Martin Droeshout e que tenha sido feito a partir de uma pintura que não chegou até nós.

A outra figuração que retrata indiscutivelmente Shakespeare é o busto de calcário pintado que decora o seu túmulo na Igreja da Santíssima Trindade de Stratford-upon-Avon, que mostra o escritor a segurar uma pena e uma folha de papel. E a duradoura e aguerrida controvérsia em torno da verdadeira aparência do dramaturgo pode agora ter ficado definitivamente aclarada com as investigações de uma prestigiada especialista em Shakespeare, Lena Cowen Orlin, que descobriu que este busto, tido até hoje como um memorial instalado alguns anos após a morte do escritor, terá sido afinal esculpido em vida do escritor por um artista que o conheceu pessoalmente.

Se tiver razão, terá sido o próprio Shakespeare a encomendar a obra, e ela corresponderá presumivelmente à imagem de si próprio que quis deixar à posteridade. Ou seja, e citando a pitoresca expressão que este mesmo busto sugeriu ao crítico moderno John Dover Wilson, confirma-se que Shakespeare tinha o ar de um “self-satisfied pork butcher” (à letra, um talhante de carne de porco satisfeito consigo mesmo).

“É altamente provável que Shakespeare tenha encomendado o monumento”, disse Orlin ao jornal inglês The Guardian. “Foi feito por alguém que o viu e conheceu em vida”.

O rosto, que rosto?

A tese da investigadora é que o busto não foi feito pelo escultor e decorador de jardins Gerald Johnson, como se pensava, mas pelo seu irmão, Nicholas Johnson, um artista especializado em criar memoriais como este, e cuja oficina londrina ficava a poucos passos do Globe Theatre, onde se estrearam muitas das peças de Shakespeare. Uma possibilidade reforçada pelo facto de Nicholas Johnson ter trabalhado num monumento semelhante na mesma igreja, dedicado a um amigo e conterrâneo de Shakespeare, John Combe, que morreu em 1614.

“Se este escultor seguiu a sua prática habitual, terá passado algum tempo em Stratford no ano que antecedeu a morte de Shakespeare”, diz Orlin. E mesmo que assim não seja, acrescenta, a proximidade da sua oficina com o Globe torna “altamente provável” que em algum momento tenha visto o rosto do dramaturgo.

A académica argumenta ainda que a inscrição pintada na placa do monumento sugere que este foi feito em vida de Shakespeare, uma vez que foi deixado um espaço em branco para se acrescentar a data da morte do autor. “Quem acrescentou a data após a morte de Shakespeare não percebeu que deveria ter usado uma linha inteira para dar essa informação importante, e o modo como a comprimiu ali de forma tão bizarra é mais um indício de que o resto foi feito em vida do autor”.

Lena Cowen Orlin irá apresentar mais detalhadamente as suas descobertas no próximo dia 23 de Abril, data em que se comemora o aniversário de Shakespeare, e tenciona incluí-las depois no seu livro The Private Life of William Shakespeare, que a Oxford University Press lançará em Julho.

Entre os muitos que têm sublinhado, com sinceridade ou ironia, a estranheza de que um génio como Shakespeare tenha tido a aparência exterior que o busto de Stratford deixa adivinhar, conta-se o poeta americano Joseph Harrison, que num poema recente, intitulado Shakespeare’s Head, também se pergunta como se podem “reconciliar” as exuberantes qualidades que todos reconhecemos a Shakespeare “com este insípido busto de azulado calcário de Cotswold posto no seu nicho”.

Numa fala da personagem Duncan na tragédia Macbetho próprio Shakespeare parece ao mesmo tempo antecipar e esclarecer o desconcerto de Wilson e Harrison: “There’s no art / To find the mind’s construction in the face” (“Não há arte que descubra no rosto a construção do espírito”, na tradução de João Palma-Ferreira).