Câmara do Porto quer tirar grupos de ajuda alimentar das ruas da Baixa e integrá-los na resposta municipal
O município notificou voluntários e associações para deixarem de distribuir comida na Baixa e, em alternativa, propôs que integrassem os três restaurantes solidários municipais ou se deslocassem para zonas sem respostas deste tipo. Mas a solução não reúne consenso.
Na quinta-feira, 11 de Março, o grupo de voluntários Amor Perfeito realizou a última distribuição semanal de comida, cobertores, produtos de higiene e outros bens essenciais a mais de cem pessoas carenciadas ou em situação de sem-abrigo do Porto no parque de estacionamento da Trindade. O grupo estava ali há seis anos, por decisão camarária, mas em Novembro de 2020 foi abordado para encontrar outras soluções. “Como foram criados três restaurantes solidários [municipais] e vai haver um quarto, a câmara do Porto acha que não será necessário ter esta ajuda de rua”, conta Ana Paula Paiva, uma de 27 voluntários.
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Na quinta-feira, 11 de Março, o grupo de voluntários Amor Perfeito realizou a última distribuição semanal de comida, cobertores, produtos de higiene e outros bens essenciais a mais de cem pessoas carenciadas ou em situação de sem-abrigo do Porto no parque de estacionamento da Trindade. O grupo estava ali há seis anos, por decisão camarária, mas em Novembro de 2020 foi abordado para encontrar outras soluções. “Como foram criados três restaurantes solidários [municipais] e vai haver um quarto, a câmara do Porto acha que não será necessário ter esta ajuda de rua”, conta Ana Paula Paiva, uma de 27 voluntários.
Aquando do primeiro contacto, o Amor Perfeito pediu para ficar no local até Dezembro, uma vez que a crise sanitária e socioeconómica se agravava e se aproximava a quadra natalícia. “Achámos que não seria a melhor altura para tomar uma decisão dessas”, desabafa a voluntária. A 4 de Março foram novamente abordados pela autarquia para sair do espaço, embora os pedidos de ajuda viessem “progressivamente a aumentar nos últimos tempos”, e tiveram de o fazer na última semana.
Ana Paula Paiva considera que “a resposta que o grupo dá não tem nada a ver com a resposta que a câmara está a dar” e, por isso, não se conseguiu enquadrar nas alternativas propostas pelo município para albergar o projecto: ou os voluntários passariam a colaborar com os restaurantes solidários ou deslocar-se-iam para outras zonas da cidade onde ainda não há respostas sociais deste tipo.
Grupos querem permanecer em zonas “centrais"
Relativamente à primeira opção, a voluntária refere que as estruturas camarárias “têm algumas características em que o grupo não se consegue encaixar”, nomeadamente os horários de distribuição da comida, entre as 20h e as 22h30. “São horários apertados, porque seria preciso estar lá às 19h para servir às 20h, e muitos de nós têm horários de trabalho que se sobrepõem a esse”, elabora. Por outro lado, apenas “quatro, cinco pessoas” poderiam integrar os restaurantes solidários, diz, o que deixaria “muitas pessoas” de fora.
Quanto à deslocação para outras zonas da cidade, a organização entende que “o centro é o sítio mais fácil para dar respostas a quem as procura”. Depois de uma primeira fase a actuar ao ar livre, junto ao Hospital de Santo António e, depois, na Cordoaria junto à antiga Cadeia da Relação, o grupo formado em 2012 foi para a Trindade e “não foi por acaso”. “É uma zona com bons acessos a transportes públicos. Se não houver transportes, que tipo de ajuda poderemos prestar?”, problematiza.
Também o grupo Amigos Improváveis na Rua foi contactado “há cerca de três semanas” para abandonar o local de distribuição de comida onde está há um ano, junto à Igreja de Santo Ildefonso, na Praça da Batalha. “Disseram-nos que tínhamos de sair dali, porque o restaurante [solidário da Batalha] já serve as refeições. Mas e tudo o resto?”, questiona José Castilho. O trabalho na rua começou em 2020 entre um grupo de amigos junto ao Teatro Nacional São João e depois passou para a Praça da Batalha. “Antes de ir para a rua, percorremos algumas artérias da cidade e [esta] foi a zona onde vimos mais gente”, justifica. Embora, na altura, não soubessem que ali perto ficava o primeiro restaurante solidário da cidade, aberto em 2016, mantiveram-se naquele sítio pela sua “centralidade”. “Temos pessoas que vêm de Ermesinde porque sabem que estamos lá”, assinala.
Ajuda vai além da distribuição de alimentos e refeições
Nem todas as pessoas que procuram ajuda estão em situação de sem-abrigo. “Há muitas pessoas que ficaram sem emprego, nomeadamente da restauração”, nota José Castilho. Além da distribuição de alimentos, refeições quentes e roupa, os 31 voluntários também actuam noutras zonas da baixa. Normalmente, começam a partilha às 20h30, mas seguem noite dentro para pontos como o Jardim do Carregal ou a Avenida Marechal Gomes da Costa. “Alimentamos, mas também damos banho e levamos ao hospital, se for preciso”, reitera.
Contactada pelo PÚBLICO, a Câmara Municipal do Porto (CMP) esclarece que o terceiro restaurante solidário a abrir, em Novembro de 2020, no Beco de Passos Manuel, “pretendeu dar resposta às pessoas em situação de sem-abrigo na zona da Baixa” e, por outro lado, “terminar com a distribuição de alimentos junto do Gabinete do Munícipe e no parque de estacionamento da Trindade”. Dessa forma, complementar-se-ia o trabalho prestado pelos outros dois restaurantes, situados em instalações do Hospital do Terço, na Batalha, e do antigo Hospital Joaquim Urbano, que “pretendem substituir a distribuição da comida no espaço público” e dar essa resposta “com mais dignidade, salvaguardando-se as questões da segurança alimentar”.
Câmara quer dar “resposta digna” em rede
Antes de notificar os grupos de rua para a saída, “reuniu a Câmara e a coordenação do NPISA [Núcleo Planeamento Intervenção Pessoas em Situação de Sem-Abrigo] Porto em Novembro com as diversas organizações de voluntários, incluindo o Amor Perfeito, no sentido de as implicar neste processo e solicitar que passassem a exercer voluntariado no restaurante, que tem uma resposta digna, sete dias por semana”. Às organizações que pretenderam continuar a trabalhar na rua, a câmara sugeriu “uma articulação com os serviços da Coesão Social e com o Eixo 6 do NPISA Porto, para enquadrar e ajudar a definir rotas e zonas alternativas e a descoberta, o que tem vindo a acontecer”.
A CMP lembra que, “nos termos legais em vigor, compete ao NPISA Porto fazer o diagnóstico, planeamento e activar as redes de resposta no âmbito dos sem-abrigo a nível municipal” e que “todas as decisões são tomadas, como não podia deixar de ser, pelo núcleo executivo do NPISA Porto, que integra as diversas instituições públicas e privadas”. A associação Coração na Rua, que integra o Eixo 6, fez saber em publicação no Facebook que foi igualmente convidada a “reestruturar e relocalizar algumas equipas”, o que fez para “não sobrepôr ou duplicar ajudas” e, assim, “chegar a todos os cantos, cobertores e camas de cartão”.
Em 2020, os três restaurantes solidários municipais serviram por volta de 150 mil refeições, com um investimento a rondar os 300 mil euros anuais. Actualmente, distribuem uma média de 525 refeições por dia “às cerca de 190 pessoas que vivem no Porto em situação de sem-abrigo sem tecto”. Estes espaços estão abertos todos os dias do ano e, ainda em 2021, irá abrir o quarto na zona ocidental.