Em defesa do Papa Francisco, o peregrino da paz
Os conflitos que atualmente vão surgindo resultam, em parte, do desconhecimento que judeus, cristãos e muçulmanos têm entre si e foram, por vezes, a ignorância e o preconceito que trouxeram e continuam a trazer a hostilidade e a violência.
Na sua recente viagem ao Iraque, a primeira de um Papa a um país de maioria xiita, o Papa Francisco apresentou-se numa missão de peregrino da paz: “Venho como peregrino (...) para implorar ao Senhor perdão e reconciliação, depois de anos de guerra e terrorismo (...) e em missão como peregrino da paz.” E considerou o povo iraquiano “uma família de muçulmanos, judeus e cristãos”. Qualificou o líder religioso muçulmano, o ayatollah al-Sistani, com quem se encontrou, como um “homem de Deus”
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Na sua recente viagem ao Iraque, a primeira de um Papa a um país de maioria xiita, o Papa Francisco apresentou-se numa missão de peregrino da paz: “Venho como peregrino (...) para implorar ao Senhor perdão e reconciliação, depois de anos de guerra e terrorismo (...) e em missão como peregrino da paz.” E considerou o povo iraquiano “uma família de muçulmanos, judeus e cristãos”. Qualificou o líder religioso muçulmano, o ayatollah al-Sistani, com quem se encontrou, como um “homem de Deus”
Ora, acontece que setores ultraconservadores criticaram o Papa pela sua aproximação aos muçulmanos. Respondendo às críticas internas, Francisco afirmou que até lhe podem chamar “herege”, mas que são passos “necessários e preparados na oração”, concluindo pela defesa do caminho do diálogo com o islão.
Esta crónica visa defender a justeza da posição do Papa Francisco perante as críticas internas, recordando a esses críticos, pouco esclarecidos ou de má fé, a conduta dos papas anteriores (João Paulo II e Bento XVI) relativamente a esta matéria, conduta, aliás, apoiada na doutrina do Concílio Vaticano II.
Com efeito, dos 16 documentos aprovados no Concílio Vaticano II, importa recordar, para fundamentar a questão em análise, a constituição Gaudium et Spes sobre a Igreja no mundo, a Nostra aetate sobre as relações com as religiões não cristãs, a Dignitatis humanae sobre a liberdade religiosa e o decreto Orientalium Ecclesiarum sobre as igrejas Orientais.
Dos referidos quatro documentos, importa salientar o respeitante ao diálogo inter-religioso, tema querido do Papa João Paulo II e, embora com menor intensidade, também do Papa Bento XVI.
João Paulo II é o Papa que consegue ter gestos públicos de maior alcance religioso, ao convocar para Assis (Itália), por duas vezes, todas as religiões para um encontro de oração pela paz no mundo. Foi ele o primeiro Papa a visitar uma sinagoga e uma mesquita.
Por sua vez, Bento XVI, numa visita à Turquia, em finais de 2006, encontrou-se com os líderes muçulmanos, visitando também uma mesquita. Numa viagem ao Líbano, em 2012, além de pedir “o silêncio das armas” e o fim da violência no Médio Oriente, apelou ao respeito recíproco e ao diálogo contínuo, porque o Médio Oriente, segundo Bento XVI, tem de perceber que os muçulmanos e os cristãos, o islão e o cristianismo podem viver juntos, sem ódio e no respeito pelas crenças de cada um”, apontando o Líbano como exemplo.
A propósito dos 50 anos do Concílio Vaticano II, Bento XVI convocou o sínodo dos bispos, com apelo ao diálogo com não crentes, e ao mesmo tempo declarou o “Ano da Fé”, tendo como temas debates entre os batizados, crentes de outras confissões e religiões, ateus e indiferentes.
Há ainda que chamar à colação o maior pensador acerca do diálogo entre as três religiões monoteístas, o teólogo católico suíço Hans Kung, autor de três grandes tomos dedicados, respetivamente, ao judaísmo, ao cristianismo e ao islão. Segundo este pensador, “não há paz entre as nações sem paz entre as religiões”. Existe, porém, quem preconize uma luta entre culturas ou o choque entre o Ocidente e o Islão.
Perante este circunstancionalismo, as opções afiguram-se claras: ou se opta por uma rivalidade entre as religiões, choque de culturas e guerra das nações ou se opta pelo diálogo de culturas e paz entre as religiões, como pressuposto para a paz entre as nações. Importa, para isso, em vez de se erguer barreiras de ódio, de vingança e de inimizade, estabelecer pontes de diálogo, numa atitude de aproximação e de compreensão.
Os lugares sagrados para as três religiões do livro (judaísmo, cristianismo e islamismo) podem ser bons motivos para um diálogo franco e sincero entre os representantes das três religiões. E, nesse diálogo, importa procurar convergências, respeitar diferenças e atenuar divergências, na linha do pensamento do Concílio Vaticano II, pois, como muito bem refere Hans Kung, “não há paz mundial sem paz religiosa”. Os conflitos que atualmente vão surgindo resultam, em parte, do desconhecimento que judeus, cristãos e muçulmanos têm entre si e foram, por vezes, a ignorância e o preconceito que trouxeram e continuam a trazer a hostilidade e a violência.
Finalmente, sempre se dirá que numa leitura com vista ao bom êxito do diálogo inter-religioso é possível afirmar que os textos considerados sagrados para as três culturas (a Tora, os Evangelhos e o Corão), quando bem interpretados, de acordo com as boas regras de exegese, apontam para a possibilidade e o dever de todos trabalharem, realisticamente, para a instauração de uma paz mundial verdadeira, procurando os ensinamentos comuns, respeitando as diferenças.
Creio ter demonstrado, ainda que sumariamente, a manifesta falta de razão dos críticos internos da viagem do Papa Francisco, “o peregrino da paz”.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico