O lugar do homem – na cozinha

A cozinha é um mundo onde aqueles porventura marginalizados são aceites, onde força física, resiliência e determinação cega são celebradas. Mas neste acolhimento há um quid pro quo – a hierarquia. A hierarquia é mantida para maximizar a eficiência, numa lógica em tudo semelhante às estruturas militares.

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Ljubomir Stanisic Nuno Ferreira Santos

Há um quê de salvação no mundo da cozinha – Bourdain mostrava-o como ninguém. Fazia-o com empatia quando falava das brigadas de piratas, degenerados e ladrões que trabalhavam entre os vapores, dos restaurantes chiques ao chiqueiro das tascas.

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Há um quê de salvação no mundo da cozinha – Bourdain mostrava-o como ninguém. Fazia-o com empatia quando falava das brigadas de piratas, degenerados e ladrões que trabalhavam entre os vapores, dos restaurantes chiques ao chiqueiro das tascas.

A cozinha é um mundo onde aqueles porventura marginalizados são aceites, onde força física, resiliência e determinação cega são celebradas. Mas neste acolhimento há um quid pro quo – a hierarquia. A hierarquia é mantida para maximizar a eficiência, numa lógica em tudo semelhante às estruturas militares.

Em 2017, o Washington Post publicou uma investigação expondo a cultura de assédio e abuso sexual nas cozinhas e nas salas dos restaurantes. Uma das principais causas apontadas foi a desigualdade de género na indústria, onde prevalece o machismo e o sexismo. A esta desigualdade junta-se ainda a desigualdade de classes, uma vez que se trata de um sector que emprega muitos imigrantes, a quem muitas vezes não são dadas as condições de trabalho devidas.

A peça do Washington Post olha ainda para a história da cozinha de restaurante. Escoffier, célebre chef francês, desenvolveu no século XIX um sistema de divisão laboral que intitulou “Brigada de Cozinha” e que foi inspirado na estrutura militar do exército.

Neste contexto, quando ouvimos frases como “Vocês são senhoras, deviam dar o exemplo a estes pilas todos”, “Solta essa voz, ninguém te ouve, amor”, “É maldisposta, nunca sorri e daquilo que ouvi é uma grande filha da mãe” ou “Tu tens jeito para coisas moles” (enquanto abana um pedaço de pão comprido), sabemos que estamos num ambiente hostil, com hierarquia definida, e nós, senhoras e filhas da mãe, estamos no fim da cadeia.

As frases são citações do Hell’s Kitchen, programa que foi líder de audiências em Portugal no domingo à noite. Estas frases foram ditas no espaço público – um espaço dominado por homens cisgénero, donos das circunstâncias e da narrativa. São por isso aceites (as frases) com mais facilidade quando ditas por eles. Atribuem-se a uma personalidade forte, sem filtros. A reacção vê-se nas e nos concorrentes, em estado de hiper-vigilância, para não serem alvo de repreensão ou troça. E isso faz bons soldados e boa televisão.

Um dos concorrentes dizia: “Faço o que me mandarem, não fico amuado por ter de lavar a loiça, são tarefas que têm de ser executadas”. Na obra Na Penúria em Paris e em Londres, publicada nos anos 30, George Orwell reflecte sobre a equivalência que estabelecemos entre um trabalho duro e desagradável (como o lavador de loiça – ou mergulhador, em francês, plongeur) e a sua utilidade social ou propósito. Este fetiche masculino do trabalho manual e do self-made man, o empreendedor, encaixa na perfeição no imaginário da cozinha militar, ou “Brigada de Cozinha”.

Tudo isto tem um quê de habitualidade perversa, traz-nos de volta as referências heteronormativas que tão bem conhecemos. E, por momentos, podemos ficar colados ao ecrã sem ter de desconstruir ou lidar com os nossos estereótipos.

Todos vamos a restaurantes, mas quase nunca pensamos no que está para lá das portas da cozinha – cá está, nas nossas televisões todos os domingos. Vamos continuar a ver?