Quem decide agora sobre a lei da eutanásia?
Esta decisão do Tribunal Constitucional, ao reabrir a discussão e ao a habilitar nos termos em que o faz, legitima e propicia a ideia do referendo.
1. A decisão do Tribunal Constitucional sobre a controversa lei da eutanásia teve, até ao momento em que escrevo, um mérito – um mérito que, de algum modo, mas não tão claramente como agora, já vinha detrás. O mérito de demonstrar que, apesar de posições antagónicas, ninguém ou muito poucos apareceram, num jeito maniqueísta, a clamar “vitórias” rotundas deste ou daquele lado. Houve dos dois lados quem ensaiasse um discurso triunfalista, mas sem grande acolhimento nem sequência. De um lado, diriam, porque afinal lei era obviamente inconstitucional; do outro, contra-argumentariam, porque o Tribunal não considerou que a “eutanásia” implicasse sempre uma violação do art. 24.º, que consagra a inviabilidade da vida humana. O esforço para incorporar no discurso político – e, em especial, em matérias desta sensibilidade e melindre – o respeito e até a compreensão pela posição do outro é um sinal de maturidade política e até de sageza e inteligência argumentativa. Não é, nem de perto nem de longe a principal ilação a tirar desta decisão jurisprudencial, mas merece ser destacar.
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1. A decisão do Tribunal Constitucional sobre a controversa lei da eutanásia teve, até ao momento em que escrevo, um mérito – um mérito que, de algum modo, mas não tão claramente como agora, já vinha detrás. O mérito de demonstrar que, apesar de posições antagónicas, ninguém ou muito poucos apareceram, num jeito maniqueísta, a clamar “vitórias” rotundas deste ou daquele lado. Houve dos dois lados quem ensaiasse um discurso triunfalista, mas sem grande acolhimento nem sequência. De um lado, diriam, porque afinal lei era obviamente inconstitucional; do outro, contra-argumentariam, porque o Tribunal não considerou que a “eutanásia” implicasse sempre uma violação do art. 24.º, que consagra a inviabilidade da vida humana. O esforço para incorporar no discurso político – e, em especial, em matérias desta sensibilidade e melindre – o respeito e até a compreensão pela posição do outro é um sinal de maturidade política e até de sageza e inteligência argumentativa. Não é, nem de perto nem de longe a principal ilação a tirar desta decisão jurisprudencial, mas merece ser destacar.
2. O primeiro ponto que merece ser evidenciado é que a lei – tal como foi aprovada – viola a Constituição. Viola-a em particular na definição das condições que podem justificar a legalização da morte medicamente assistida, que, por não serem suficientemente claras e determinadas, violam o princípio do Estado de direito democrático e a reserva de competência legislativa da Assembleia da República. Ou seja, as situações em que a “eutanásia” pode ser praticada com cobertura constitucional e legal têm de ser definidas com um grau de precisão e detalhe que a legislação fiscalizada simplesmente não cumpria. Esta questão é muito importante, é mesmo decisiva, porque faz avultar dois argumentos que tradicionalmente são usados contra a legalização da eutanásia: um é a sua irreversibilidade; o outro é o manifesto risco de abuso.
3. Aparentemente, trata-se de argumentos práticos. Por um lado, como a morte, uma vez ocorrida, não tem reversão, é fundamental garantir a redução do perigo de erros e de enganos a zero ou quase zero. Por outro lado, a existência de alguma ambiguidade ou imprecisão nos conceitos abre a porta a abusos e ao risco de uma extensão informal e progressiva das situações contempladas. Mas é importante perceber de que, ao contrário do que foi dito e repetido na tarde e na noite de ontem, estas não são meras objecções formais, ultrapassáveis com engenhosas redacções. Não, não são. Mesmo no comunicado curto e sintético, o Tribunal deixa muito claro que a violação daqueles princípios constitucionais se faz por referência ao direito à vida, protegido no art. 24.º. Ou seja, um acto de eutanásia que fosse praticado ao abrigo da formulação agora reprovada violaria o conteúdo do direito à vida tal como ele está plasmado na Constituição.
4. O segundo ponto, muito glosado: a admissão expressa pelo Tribunal de que a legalização da eutanásia, feita com exigências mais gravosas do que aquelas que constavam da lei, é compatível com o princípio da inviolabilidade da vida humana do dito art. 24.º. Muitos declararam que sobre este ponto havia muitas dúvidas e elas ficaram agora dissipadas. Independentemente do que se pense sobre a posição do Tribunal, uma coisa é clara: ela não é surpreendente nem incongruente com jurisprudência anterior. Não foi, aliás, por acaso que o Presidente da República não suscitou a questão: foi apenas e decerto porque, como reputadíssimo constitucionalista, já conhecia a resposta.
Isto dito quanto ao conteúdo e alcance do art. 24.º, importa esclarecer que o Tribunal não estabeleceu um direito geral a pedir a morte. Admitiu que, em circunstâncias muito excepcionais e claramente determinadas e precisadas – ainda mais exigentes do que as previstas nesta lei –, a legalização não violaria a Constituição e, por conseguinte, o conteúdo do art. 24.º. Fora dessas circunstâncias, seria sempre inconstitucional.
5. Esta decisão do Tribunal Constitucional, para lá de pôr os pontos nos “is” quanto a certos facilitismos, tem ainda uma outra consequência positiva. É que claramente desloca a questão do terreno jurídico para o terreno político. Ao dizer-se – ainda que em obiter dictum – que a legalização da eutanásia pode ser compatível com a Constituição, está também a dizer-se que, dentro daqueles apertados limites, esta é uma decisão eminentemente política, civilizacional, mundividencial. É justamente esta clarificação jurídica – que quem conhecesse o entendimento do Tribunal e de muitos seus congéneres não precisaria – que devolve a questão ao domínio da escolha política. Sabendo agora, de ciência certa, que esse passo é possível, agiganta-se a pergunta: quem deve verdadeiramente decidir? Quem?
8. Nesta opção, está em jogo algo de fundamental para a sociedade, para a forma como a concebemos e a compreendemos. Está em causa um corte e uma ruptura com a concepção mundividencial até aqui dominante; esse corte e essa ruptura carecem de uma validação social e cidadã de natureza singular. Esta decisão, ao reabrir a discussão e ao a habilitar nos termos em que o faz, legitima e propicia a ideia do referendo: do referendo como forma ideal de validar uma escolha política fundamental que mobiliza por excelência a liberdade de consciência. A liberdade de consciência não pode ser um apanágio dos deputados, deve ser estendida a todos os cidadãos.
9. Aqui faço uma vez mais um apelo ao PSD e ao seu Grupo Parlamentar: há uma oportunidade única para relançar o referendo. Não o digo apenas porque sempre o defendi ou porque há uma moção aprovada em Congresso que o reclamou. Mas sim porque esta decisão, ao balizar a questão jurídica, torna flagrante a necessidade de uma escolha política, que diz de tal modo respeito à interioridade da pessoa e das pessoas, que justifica e merece a validação ou não validação em referendo.
SIM Marcelo Rebelo de Sousa. Marcou a posse com um discurso encorajador. Voltou a ligar o início de funções a uma visita ao Papa Francisco, verdadeira reserva moral global, agora reforçada com a viagem ao Iraque.
NÃO Conselho Económico e Social. A ideia de um manual de linguagem neutra, pela sua artificialidade, não tem sentido. O exemplo da palavra “contribuinte” – logo um substantivo e adjectivo com dois géneros – diz tudo.