Tentativa vã de equilibrar o desequilíbrio
Se não existem tradutores, ou escritores, negros, não precisamos nem de os procurar, nem de os acarinhar, nem de os entender. São estas opiniões que mantêm o statu quo de uma sociedade bem resguardada nas suas hierarquias.
É interessante como todos ou todas (no PÚBLICO de sexta-feira, logo duas vezes) se apressaram a defender a opinião de que uma jovem poetisa negra (Amanda Gorman) pode ser traduzida por uma jovem escritora branca holandesa ou, no caso catalão, por um velho tradutor branco. Claro que pode. A questão tem mais a ver com sensibilidades e menos com liberdades ou direitos. É interessante como tantos falam de poesia, de prosa ou de livros técnicos e ninguém menciona que, afinal, se trata sobretudo de uma questão de oportunidades perdidas – como, aliás, no recente caso da versão portuguesa do filme da Disney, Soul. Ninguém duvida que as vozes brancas eram tão boas como as negras teriam sido (mas não eram melhores, hélas), o que se discute é a oportunidade perdida de contratar actores negros, que poucas oportunidades têm em geral.
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É interessante como todos ou todas (no PÚBLICO de sexta-feira, logo duas vezes) se apressaram a defender a opinião de que uma jovem poetisa negra (Amanda Gorman) pode ser traduzida por uma jovem escritora branca holandesa ou, no caso catalão, por um velho tradutor branco. Claro que pode. A questão tem mais a ver com sensibilidades e menos com liberdades ou direitos. É interessante como tantos falam de poesia, de prosa ou de livros técnicos e ninguém menciona que, afinal, se trata sobretudo de uma questão de oportunidades perdidas – como, aliás, no recente caso da versão portuguesa do filme da Disney, Soul. Ninguém duvida que as vozes brancas eram tão boas como as negras teriam sido (mas não eram melhores, hélas), o que se discute é a oportunidade perdida de contratar actores negros, que poucas oportunidades têm em geral.
Num país que traduziu Out of Africa por África Minha, em que todos os filmes de Woody Allen têm problemas de tradução por falta de experiência judaica, em que muitos livros têm fracas traduções — não porque o tradutor desconheça academicamente a língua, mas porque desconhece a vivência e a experiência da língua no local da acção —, alguém sabe quantos autores negros são publicados anualmente em Portugal? Nos Estados Unidos são 5% do total da ficção – tirem daí as conclusões.
Não me parece que a experiência do racismo, ou de uma violação, possa sequer ser “imaginada”, como é sugerido num dos artigos de opinião. A proposta de utilizar um tradutor negro, antes de ser discutida no espaço da sensibilidade e da proximidade, deveria ser discutida no âmbito de emprego e da realidade laboral dos números.
A hipótese de entregar este trabalho de tradução a uma pessoa negra tem um valor apenas simbólico, mas de que trata a poesia se não de símbolos também? Não foi por esse mesmo valor simbólico que a jovem poetisa foi escolhida para a tomada de posse de um novo Presidente branco dos Estados Unidos? Utilizar como argumento a experiência prévia do tradutor branco em detrimento de um possível tradutor negro é um argumento perigoso. Se não damos trabalhos a tradutores negros — porque os brancos surgem como opção óbvia e imediata —, como invocar depois a sua falta de experiência?
Que muitos fiquem com pena da autora não-binária ou do velhote catalão, mas que não pensem nos tradutores potencialmente até mais interessantes que não surgem, como estes, por default, demonstra a falta de capacidade de olhar o outro e tentar ver como o outro. Que haja vítimas colaterais neste percurso é lastimável, mas normal. Agora é hábito em Portugal os brancos falarem da sua experiência de racismo, adicionando uma anedota no estrangeiro em que foram um pouco mal tratados por serem portugueses, nivelando um momento passageiro nas suas vidas à constante e assustadora presença do racismo ou do anti-semitismo na vida de um negro ou de um judeu, como quem coloca o anti-racismo e a extrema-direita na mesma frase e em antípodas semelhantes da sociedade portuguesa (o que sucedeu recentemente com o primeiro-ministro).
Não vou fugir a este hábito patético e puxo pela minha experiência como artista que esteve quase para ser comprado pelo Pompidou e, por duas vezes, não foi, precisamente e explicitamente, na primeira por não ser mulher e na segunda por não ser africano. Será que isto é justo? Não me parece. Será que é necessário? Não tenho dúvida. É preciso fazer um esforço enorme para tentar equilibrar o desequilíbrio dos últimos séculos, e tentar repor alguma justiça. Azar o meu, de ser artista agora, de não ser mulher, de não ser africano, mas não choro por isso, antes pelo contrário.
Mas os tradutores e os escritores brancos virem escrever artigos de opinião sobre isto, e não haver contrapeso neste jornal, tem consequências mais graves, porque reafirma a posição preguiçosa de uma maioria: se não existem tradutores, ou escritores, negros, não precisamos nem de os procurar, nem de os acarinhar, nem de os entender. São estas opiniões que mantêm o statu quo de uma sociedade bem resguardada nas suas hierarquias. Todos temos opiniões muito afirmativas, nomeadamente os que escrevem em jornais. E que são quase sempre os mesmos, os mesmos, os mesmos.