Boal, o “filho do padeiro”
Talvez em Portugal saibamos ainda pouco deste filho de um padeiro português que mudou o teatro no século XX, deixando-nos um imenso legado cujo potencial emancipatório continua a oferecer-se – 90 anos depois de Augusto Boal ter nascido – à nossa imaginação.
Foi há exatamente 90 anos, no Rio de Janeiro, que nasceu Augusto Boal, filho de um padeiro português, José Augusto, e de Albertina Pinto, de Justes, Vila Real. Conhecido em todo o mundo pelo Teatro do Oprimido, Boal esteve associado a várias revoluções dramatúrgicas muito para além dessa forma teatral.
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Foi há exatamente 90 anos, no Rio de Janeiro, que nasceu Augusto Boal, filho de um padeiro português, José Augusto, e de Albertina Pinto, de Justes, Vila Real. Conhecido em todo o mundo pelo Teatro do Oprimido, Boal esteve associado a várias revoluções dramatúrgicas muito para além dessa forma teatral.
Na década de 1950 estuda dramaturgia com John Gassner em Nova Iorque e, por intermédio de Abdias Nascimento, fundador do Teatro Experimental do Negro (criado em 1944), entra em contacto com os movimentos artísticos do Harlem. De volta ao Brasil, em 1956, junta-se ao Teatro de Arena, em São Paulo e, com figuras como Guarnieri, José Renato e Oduvaldo Viana Filho, inicia um conjunto de experiências que transformaram o teatro brasileiro. Desde logo, ao pôr em cena não apenas os “clássicos” da Europa, mas a própria realidade brasileira. Cruzando as influências do Actor’s Studio de Nova Iorque, do teatro épico brechtiano e do teatro da América Latina, buscam um repertório próprio e um ecletismo estilístico que estaria presente em algumas das peças mais importantes do período. Boal resgata, através do teatro, a história de heróis populares, como Zumbi (o líder da comunidade de escravos conhecida por Quilombo dos Palmares) ou Tiradentes (símbolo do movimento que, no século XVII, quis declarar a independência do poder colonial português).
Além de Arena Conta Zumbi (1965) e de Arena Conta Tiradentes (1967), esse período é marcado ainda por Opinião – um espetáculo musical estreado alguns meses depois do golpe militar no Brasil, com Bethânia, João do Vale e Zé Keti a intercalarem histórias e canções sobre a realidade social e política brasileira – ou por Arena Canta Bahia, de 1965, também dirigido por Boal e com um elenco impressionante: Caetano, Gal Costa, Gilberto Gil, Bethânia, Tom Zé, entre outros. Em 1968, ano marcado pelo endurecimento repressivo do regime, Boal desafia a ditadura com a Feira Paulista de Opinião, um espetáculo-mosaico feito de dezenas de contributos de artistas que respondiam à provocação: “O que pensa você do Brasil de hoje?”, num processo de encenação coletiva sobre o momento social e político do país. No Brasil de 2020, o mesmo gesto foi retomado pela sua companheira de vida, a incansável e encantadora Cecília Thumim Boal, que, mais de meio século depois, fez a mesma pergunta a dezenas de artistas. Esta terça-feira mesmo, a Feira tem um momento especial, no canal de YouTube do Instituto Augusto Boal, para assinalar os seus 90 anos.
Preso e torturado em 1971, Boal exila-se então com a família, primeiro na Argentina, depois em Portugal, em 1976. Por aqui, proporá reformular o curso de Teatro do Conservatório, trabalha com A Barraca (para a qual encena várias peças, entre as quais Zé do Telhado, com texto de Hélder Costa, cenografia de João Brites, música de Zeca Afonso e, no elenco, Mário Viegas, Céu Guerra, entre muitos outros), planeia com José Mário Branco e outros um extenso programa de comemorações populares do 25 de abril, no Porto. A sua casa em Lisboa torna-se uma espécie de embaixada informal da resistência brasileira. Lá teve lugar, por exemplo, o célebre encontro entre Otelo e Chico Buarque. Terá sido lá que recebeu, numa fita, uma carta-musicada de Chico: a canção que lhe é dirigida e dedicada, Meu caro amigo.
A partir de Paris, onde mora até 1986, Boal torna-se mundialmente conhecido pelo “Teatro do Oprimido”, um método que desenvolveu para “devolver os meios de produção teatral ao povo”. À semelhança da “Pedagogia do Oprimido”, do seu companheiro Paulo Freire, pretendia criar uma forma dialógica de relação teatral, que quebrasse o monopólio dos atores sobre o “espaço estético” e permitisse aos espectadores, através da entrada em cena, romper a “quarta parede” e assumirem, também eles, a condição de atores. “Toda a gente pode fazer teatro”, diria Boal de forma provocadora, “até os atores!”. Na sua mensagem por ocasião do Dia Mundial do Teatro, em 2009, insistiria precisamente nessa sua conceção de “teatro essencial”: “Não só pompas, mas também o café da manhã e os bons-dias, tímidos namoros e grandes conflitos passionais, uma sessão do Senado ou uma reunião diplomática – tudo é teatro. Uma das principais funções da nossa arte é tornar conscientes esses espetáculos da vida diária onde os atores são os próprios espectadores, o palco é a plateia e a plateia, palco. (…) O que nos é familiar torna-se invisível: fazer teatro, ao contrário, ilumina o palco da nossa vida cotidiana”.
Como milhares de outras pessoas por todo o mundo, conheci Boal por causa do Teatro do Oprimido. A experiência que desenvolveu quando, no início da década de 1990, foi eleito vereador pelo PT, no Rio de Janeiro, é também fascinante. A partir de um mandato político, foram criados mais de 50 grupos de teatro por toda a cidade, formando um inédito dispositivo de participação popular (ao qual chamou “Teatro Legislativo”), no qual organização comunitária, intervenção política e criação artística andavam a par.
Talvez em Portugal saibamos ainda pouco deste filho de um padeiro português que mudou o teatro no século XX. Mas vale muito a pena conhecer as suas histórias, inquietações e propostas teatrais e políticas. É um imenso legado cujo potencial emancipatório continua a oferecer-se – 90 anos depois de Boal ter nascido – à nossa imaginação.